A solidariedade contra a crise

O primeiro-ministro italiano defende a idéia de que a União Europeia emita títulos de dívida para financiar projetos que estimulem o crescimento econômico de seus estados -membros

Em novembro passado, o economista, Mario Monti, de 69 anos, recebeu do presidente Giorgio Napolitano a incumbência de substituir Silvio Berlusconi como primeiro-ministro da Itália. Era e ainda é uma missão árdua. Até maio de 2013, ele tem de reavivar a terceira maior economia da zona do euro, politicamente desacreditada, mergulhada numa recessão grave, fortemente endividada e pouco competitiva. A aprovação popular da gestão de Monti, que já foi de 71 %, caiu para 34% neste mês, depois de reformas que incluíram o aumento de impostos e da idade para a aposentadoria. Ex-comissário de Concorrência da União Europeia (UE), Monti nunca disputou um cargo político e renunciou ao salário de chefe de governo para dar o exemplo de austeridade que quer imprimir à Itália. Ele respondeu às perguntas de VEJA em um momento de grande pessimismo do mercado em relação à capacidade da Itália de honrar sua dívida e antes de embarcar para a reunião do G20 (grupo das principais nações desenvolvidas e emergentes), no México.

O senhor tem apenas um ano para completar as reformas destinadas a recuperar a economia da Itália. Será o bastante?

A situação macroeconômica da Itália é absolutamente saudável. A dívida pública é elevada, é verdade, mas as empresas e as famílias italianas têm finanças equilibradas. O endividamento do estado deve começar a diminuir no próximo ano, quando esperamos alcançar o equilíbrio no orçamento. O déficit orçamentário em 2011 foi de 3,9%, e o objetivo para 2012 é chegar a 1,7%. Se excluirmos os juros da dívida, a Itália terá um superávit primário (quando a arrecadação supera os gastos antes de pagar os juros da dívida pública) positivo de 3,6% já neste ano.

Como é possível classificar a situação macroeconômica da Itália de “absolutamente saudável" se o PIB do país registrou queda nos últimos três trimestres?

Crescimento e fundamentos macroeconômicos são duas coisas diferentes. A economia está em recessão porque no segundo semestre de 2011 a Itália implementou correções orçamentárias que somaram 80 bilhões de euros em aumentos de impostos e redução de despesas. Ao falar da situação macroeconômica, eu me referia aos fundamentos econômicos. Estes estão em ordem, pois o déficit orçamentário neste ano deverá ser a metade da média da UE. Nosso sistema financeiro é saudável e a taxa de desemprego, embora ainda esteja elevada, na casa dos 10%, está um pouco abaixo da média da zona do euro, de 11%. Esses índices são uma consequência, essencialmente, da forte recessão de 2009, que afetou a todos.

A zona do euro aprovou um pacote de 100 bilhões de euros para resgatar o sistema financeiro da Espanha. Considerando que os juros da dívida italiana são quase tão altos quanto os da espanhola, qual é o risco de seu país também precisar de socorro externo?

Não me parece aconselhável especular sobre esse tipo de cenário, pois isso apenas aumenta o nervosismo, já grande, dos mercados. Reitero, aqui, o que disse sobre os fundamentos econômicos. O único desequilíbrio na Itália diz respeito ao nível da dívida pública. Sobre isso devemos falar para conter o nervosismo dos mercados, que aumenta os custos do refinanciamento do estado.

O que sua gestão está fazendo para reduzir a dívida pública?

Uma das prioridades é a luta contra a evasão fiscal, que rendeu 12,7 bilhões de euros aos cofres públicos em 2011 e deverá proporcionar um valor ainda maior neste ano. Além da redução da dívida, as maiores atenções do meu governo são dirigidas às reformas estruturais. A da previdência iniciada em dezembro de 2011, permitiu elevar a sustentabilidade das contas públicas com o aumento progressivo da idade para a aposentadoria até os 67 anos. Igualmente importantes são as reformas para aumentar a competitividade da economia, o que inclui flexibilizar os horários de funcionamento do comércio, liberar a venda de determinados medicamentos e permitir aos postos de gasolina ampliar a oferta de produtos em suas lojas de conveniência, entre outras medidas para aquecer a atividade econômica e impulsionar a criação de emprego. O setor de energia e o transporte ferroviário também serão submetidos a uma maior concorrência. A administração pública, por sua vez, está sendo modernizada, com o objetivo de reduzir o tempo e o dinheiro gastos pelas famílias e pelas empresas com a burocracia. Todos os documentos de registro civil, como as certidões de nascimento, agora são feitos pela internet.

A Itália começou a perder competitividade econômica antes mesmo de a atual crise se instalar. Por quê?

O grande problema da Itália é seu fraco potencial de crescimento. As empresas italianas até que se defendem bem, pois detêm uma tradição de produtos belos, bons e bem feitos em inúmeros setores, como os de artigos de luxo, de equipamentos para o lar e de máquinas. Muitas das medidas adotadas por mim nos últimos seis meses e das que estão por vir visam a criar condições mais favoráveis para o investimento estrangeiro, por meio de uma administração pública mais moderna, uma justiça mais rápida e um mercado de trabalho mais flexível e propício ao aumento de produtividade.

As grandes decisões da União Europeia nos últimos anos estiveram nas mãos da Alemanha e da França. Como a Itália pode conquistar mais voz na política europeia?

A França e a Alemanha têm um papel especial na UE, pois quase sempre foram protagonistas das guerras sangrentas que laceraram a Europa nos últimos séculos. Como membro fundador da UE, a terceira maior economia da zona do euro e a segunda potência manufatureira depois da Alemanha, a Itália também ocupa uma posição de destaque na região. Reforçar nossa atuação política no âmbito regional é uma das minhas prioridades. Trata-se, de um lado, de encontrar um equilíbrio entre a consolidação das contas públicas e a necessidade de promover o crescimento e, de outro lado, de criar as bases para uma união econômica e monetária mais sólida, responsável e solidária.

Como solucionar o endividamento e a estagnação econômica dos países da zona do euro?

Para voltarem a crescer, é necessário que os países-membros ajam de forma coordenada e cumpram suas obrigações, cientes de que a margem de manobra

é maior para uns do que para outros. Para os que têm dívidas elevadas ou foram atingidos fortemente pela crise, por causa dos riscos excessivos assumidos por bancos superdimensionados ou das bolhas imobiliárias, a prioridade é pôr em ordem as contas públicas. Também são necessárias reformas para aumentar a competitividade, a flexibilidade e o dinamismo de nossas economias. A UE pode e deve ajudar cada um de seus membros a sair da recessão, porque esta acaba por afetar o bloco como um todo, se não a própria economia global. Espero que o Conselho Europeu (que reúne todos os governantes dos estados-membros da União Europeia), que se encontrará nos dias 28 e 29 de junho, dê impulso ao aumento de capital do Banco Europeu de Investimento ou à emissão de títulos europeus (eurobonds) para o financiamento de projetos que estimulem o crescimento. Espero, também, que o Conselho seja mais benévolo com o investimento produtivo ao fazer a avaliação das contas públicas dos países.

Podemos confiar em uma saída breve para a atual situação europeia?

A crise na zona do euro encontra-se em fase de solução. Não é nada fácil pôr em acordo dezessete países, e menos ainda todos os 27 que integram a UE. Mesmo assim, os sócios europeus têm dado provas de uma extraordinária solidariedade uns para com os outros durante essa crise, que teve origem, inicialmente, nos Estados Unidos. A dívida pública acabou por revelar as fragilidades do euro, tão logo desapareceu a confiança dos mercados. A solução definitiva passa pelo aperfeiçoamento da integração entre os países da zona do euro, assim como das demais nações da UE que almejam adotar a moeda comum, e do contrato que os une. Só com maior confiança entre os estados-membros será possível avançar em direção a uma solidariedade ainda maior, com a criação dos títulos da dívida europeia.

Tem sido politicamente árduo convencer os italianos a aceitar apertos como o aumento da idade de aposentadoria no país?

Os italianos deram prova de grande maturidade e responsabilidade durante essa crise. Em novembro de 2011, quando o presidente Napolitano me pediu para comandar o novo governo, a Itália estava à beira do abismo, após a crise da zona do euro ter se propagado por outros países. O aumento da idade de aposentadoria é visto como necessário em todos os países europeus, pois a expectativa de vida aumentou muito nas últimas décadas. Na Itália, é de 82 anos, uma das mais altas no mundo. A reforma italiana é uma das mais avançadas, na medida em que a idade da aposentadoria passa a ser vinculada à expectativa de vida. Sem essa mudança, as gerações futuras não teriam garantia de sustento digno no fim de sua carreira. Os italianos têm consciência da seriedade do contexto externo e de que as reformas econômicas já deveriam ter sido feitas há muito tempo. O número de greves tem sido bastante reduzido. Dito isso, é claro que, a esta altura, gostariam de começar a ver o fruto de seus esforços e sacrifícios, principalmente em relação à estabilização da situação na zona do euro, às taxas de juros pagas pelo estado quando refinancia a sua dívida, ao crescimento econômico e ao emprego.

A Igreja italiana terá de pagar imposto sobre suas atividades comerciais. Por que decidiu acabar com esse privilégio ampliado por seu antecessor, Silvio

Berlusconi?

A isenção que beneficiava as entidades eclesiásticas era motivo de queixa da Comissão Europeia fazia vários anos, sob a alegação de concorrência desleal. Essa situação precisava mudar. Tratava-se de repartir o esforço dos italianos para enfrentar a crise.

Qual é a sua avaliação do governo da presidente Dilma Rousseff para as relações entre o Brasil e a Itália?

Nossos países possuem uma relação bilateral tradicionalmente estreita e caracterizada por intensas e crescentes relações econômicas, como atesta a presença de mais de 700 empresas italianas no Brasil. Saúdo a recente orientação do Brasil de querer reunir novamente o Conselho Bilateral de Cooperação, órgão consultivo que deveria funcionar uma vez por ano, ora na Itália, ora no Brasil, o que não vinha ocorrendo fazia mais ou menos dois anos. Nossa parceria vai muito além da agenda bilateral. O Brasil é um importante parceiro da UE, com a qual reforçou a cooperação na educação, na cultura, na indústria e nos transportes, e em questões de interesse mundial, como o desenvolvimento sustentável e as mudanças climáticas.

O senhor, que nunca disputou uma eleição, foi designado para o cargo por sua reputação como tecnocrata. Como está sendo a experiência de governar a Itália?

Trata-se de uma tarefa desgastante, mas fascinante, para a qual fui chamado por um período limitado. Procuro desempenhá-la da melhor maneira e com senso de responsabilidade, tendo sempre em mente o interesse geral, principalmente dos jovens e das gerações futuras. Nunca digo que devemos fazer algo, como reduzir a dívida pública, porque a UE o exige. Ao contrário, procuro explicar que as contas públicas em ordem e as reformas estruturais nos tornarão mais fortes e nos permitirão criar mais e melhores empregos.

O senhor disse que o campeonato italiano de futebol deveria ser suspenso por dois ou três anos, por causa do escândalo de compra de resultados de jogos por apostadores. A medida resolveria o problema?

Foi um desabafo. Não sou político, e isso às vezes fica claro nas minhas declarações.

Sua intenção é continuar na política depois de deixar o cargo, em 2013? Não.

Fonte: Veja – 23/06/2012