É melhor de mãos dadas
Jornalistas de VEJA entrevistaram quatro economistas sobre o que mudou e o que não mudou nas sempre tensas relações entre a "mão pesada" do estado e a "mão invisível" do mercado — esta, a famosa expressão de Adam Smith, patrono da ciência econômica, para descrever o conjunto de empresas, capitalistas e consumidores. A conclusão deles é que estado e mercado são complementares, e não inimigos em luta de vida ou morte.
Vito Tanzi
O que resistiu ao tempo e às mudanças de conjuntura e não muda nas atribuições do estado?
O papel regulador. O estado tem de fazer o mercado funcionar da melhor forma possível. Cabe ao estado investigar e corrigir o abuso de poder econômico, a falta de transparência, a formação de monopólios e os favorecimentos. Todas as demais distorções decorrem da negligência do estado nesses fundamentos. A má distribuição de renda decorre do mau funcionamento do mercado, mas cabe ao estado corrigir a falha que deu origem à desigualdade. Há, porém, uma diferença entre proteger os vulneráveis e redistribuir a renda. A ideia de redistribuir é que nos levou ao aumento insustentável do gasto público. Devemos nos preocupar com o nível de renda dos 20% mais pobres da população. O estado deveria ter compromisso com as pessoas realmente pobres, os mais vulneráveis. Os programas de educação para todos ou saúde para todos não são fundamentais. Eles são aceitáveis, mas desde que se mostrem exequíveis e não levem o país à falência.
Quais deveres do estado não mudam, seja o governo liberal ou conservador?
Neste começo de século, parece ser uma moléstia mundial a insistência dos governos em não reduzir seu volume de gastos. Acima de um determinado limite, os gastos públicos se tornam insustentáveis. Como quase sempre existem também enormes déficits públicos, os impostos não podem ser reduzidos. Mas os gastos públicos podem e devem ser cortados. O limite da insustentabilidade varia de país para país, mas, do ponto de vista puramente empírico, percebo que, quando um governo gasta mais do que 35% do produto interno bruto (PIB), ele está pondo em risco a estabilidade da economia e o bem-estar da população. Eu diria que 35% do PIB é o limite de gastos públicos acima do qual um país, seja ele qual for, começa a correr o risco de falir.
Continua sendo papel dos governos reativar economias em crise?
O estado nem tinha essa função até a década de 30, quando John Maynard Keynes publicou seu famoso livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Desde então, ela tem feito parte da pauta de atuação dos governos. Eu aceitei a economia keynesiana, mas com o tempo tive a chance de conhecer seus limites. Com Keynes, surgiu a ideia de que o governo, em situações especiais, pode contratar um grupo de trabalhadores para abrir um buraco e outro grupo para tapá-lo, mantendo, assim, certo nível de emprego. Se isso funcionou durante a Grande Depressão americana dos anos 30 é ainda motivo de debate. Mas, para mim, parece fora de dúvida: hoje não funciona mais. A ideia keynesiana de que os empregos são intercambiáveis é uma ficção, sobretudo nas economias modernas, que exigem mão de obra altamente especializada. Por essa razão, em muitos países as estatísticas mostram, em aparente paradoxo, altos níveis de desemprego e, ao mesmo tempo, vagas sobrando.
Depois da hegemonia da economia de mercado no processo de globalização, estamos assistindo à volta do capitalismo de estado?
Parece ser a tendência, mas o capitalismo de estado não é monolítico. Compare a Argentina e a Coreia do Sul. Os dois países seguiram o mesmo caminho, com o mesmo tipo de política industrial, mas executaram o projeto de modo diferente. Estive na Coreia pela primeira vez no começo dos anos 80. Fui como consultor. Certo dia, levaram-me para visitar uma fábrica de carros. Era a Hyundai. Pensei que eles fossem loucos, pois nunca seriam capazes de competir com o resto do mundo. Como sabemos, conseguiram. Os sul-coreanos cometeram alguns erros, mas acertaram muito. Criaram uma economia regulada, mas não restritiva, e montaram um dos melhores sistemas de educação do mundo. A Argentina fez o contrário, estatizou para manter vivas empresas que deveriam desaparecer, e agora está pagando o preço.
A China tem sido vista como a grande vitrine do sucesso do capitalismo de estado. Procede?
A China é um estado autoritário. No começo, um sistema assim funciona bem. O governo é ágil para executar projetos porque atropela interesses e lobbies. Na democracia, tudo precisa ser negociado, e isso leva tempo. No atual estágio, tudo é fácil para a China. O país absorve tecnologia do exterior, aprimora seu sistema educacional, chama de volta seus melhores profissionais. O problema é que essas vantagens — econômicas, frise-se — acabam. Os interesses e lobbies começam a vingar, o governo autoritário perde o poder inicial de higienizar o mercado. A China ainda está se beneficiando do autoritarismo, mas os problemas aparecerão, acredito, dentro de uns cinco anos.
Entre o autoritarismo chinês e a liberdade total dos mercados, deve existir alguma coisa mais virtuosa, não?
Sim, um sistema de mercado sabiamente regulado. Não acredito em fundamentalismo do mercado como a escola de Chicago. Não acredito em Friedrich Hayek, o expoente da escola austríaca. Hayek acreditava que o sistema de preço nos oferece todas as informações de que precisamos sobre a economia, dispensando qualquer outro mecanismo de análise. Obviamente, nem tudo está no preço. Quem compra um pacote turístico para as férias não sabe, antecipadamente, se o preço embute a real qualidade dos serviços que vai receber. Quando levo meu carro à oficina, não sei quanto vai custar o conserto nem tenho ideia se os mecânicos farão de fato o serviço pelo qual cobraram. Nesses casos, o preço não deu as informações necessárias. É preciso regular também os programas do estado de bem-estar social. Na Itália, havia gente se aposentando aos 30 anos de idade. Com pensão integral. Os governos precisam perceber as distorções antes que elas virem desastres e agir. Se os bancos têm de ser salvos porque ficaram grandes demais para falir, parece-me óbvio que eles não podem ser livres para chegar a ficar tão grandes. O governo precisa se antecipar ao problema e fatiá-los, cumprindo sua missão essencial de garantir que o mercado funcione da melhor forma possível.
Entre os países que formam o Bric, quais as economias mais bem equipadas para enfrentar os desafios propostos pelo século XXI?
Pela ordem: Índia em primeiro, depois o Brasil, em seguida a China e, por último, a Rússia.
Fonte: Veja - 14/07/2012