"Quem gosta de chão de fábrica é intelectual"
O economista critica as medidas de proteção da indústria do governo Dilma e diz que o país deveria apressar-se em corrigir o maior erro dos últimos séculos: a negligência com a educação
Guilherme Evelin e Marcos Coronato
A economia começou a fascinar o cientista Samuel Pessoa na crise econômica dos anos 1980. Naquele período, o mestre em física começou a achar que as sociedades eram um objeto de estudo mais fascinante que a natureza. Ele se tornou doutor em economia em 1994, pela Universidade de São Paulo, com uma tese a respeito do impacto no Brasil da alta global dos preços do petróleo. Atualmente, divide as semanas entre a consultoria Reliance e a chefia do Centro de Crescimento Econômico do Instituto brasileiro de Economia, na Fundação Getúlio Vargas. Ao estudar como os pensadores brasileiros lidaram com o desenvolvimento nas últimas décadas, Pessoa ficou impressionado: poucos pensaram como a educação ruim é um de nossos maiores problemas. No momento, ele está organizando, com outros economistas, um livro sobre a história econômica brasileira.
Época - Não dar prioridade à educação foi uma escolha da sociedade brasileira?
Samuel Pessoa - Dos anos 1930 aos anos 1950, gastávamos em educação 1,5% do PIB. Hoje, os gastos estão em 5%, e um monte de gente acha pouco. Além de gastar só 1,5% do PIB, um terço era para a universidade. Se você abrir o gasto por aluno, fica escandaloso. Com cada aluno do ensino fundamental, gastávamos 10% do PIB per capita. Com cada aluno do ensino médio, gastávamos dez vezes mais, o equivalente ao PIB per capita. E, com cada aluno do nível superior, gastávamos 70 vezes mais. Aquele ensino secundário que nossas avós lembram como muito bom, em que as pessoas aprendiam bem matemática, latim, francês, só era alcançado pelos ricos. Nos anos 1950,70% dos alunos de 7a14 anos estavam fora da escola. Os pobres ficavam no fundamental. Aonde só os ricos e os muitos ricos chegavam, gastávamos um monte de dinheiro. Uma nação nessas condições resolveu construir Brasília, e as esquerdas foram para a rua defender o "petróleo é nosso". Por que as esquerdas não foram defender escola pública e gratuita para todo mundo? Não houve um movimento pela educação vindo da esquerda com a mesma força do movimento pelo petróleo. Nosso economista maior do desenvolvimento, Celso Furtado, uma pessoa que passou a vida toda pensando por que o Brasil é subdesenvolvido, escreveu uns 30 livros sobre o tema, mas nunca tratou da educação. Em nenhum momento da vida produtiva dele, de 50 anos, achou que havia qualquer relação entre falta de educação e subdesenvolvimento. Então a gente olha a Coreia do Sul, o maior caso de sucesso em educação da história da humanidade...
Época - Pela velocidade da mudança?
Pessoa - Sim. Educação é um processo lento. Filho de analfabeto tende a ser analfabeto. Para isso mudar, tem de haver um esforço imenso da família e da sociedade. O caso brasileiro é o normal: numa sociedade que não investiu em educação, as forças para que esse estado de coisas se perpetue são enormes. O caso sul-coreano é o milagre. É a única vez na história em que uma sociedade iletrada dá origem a filhos com ensino secundário de alto nível e a netos com educação superior de boa qualidade. Eles têm até um excesso de preocupação com isso, uma "education fever" (febre de educação) .Alguns olham para o sucesso econômico da Coreia do Sul e acham que ele é resultado de controle de importações, política industrial, políticas setoriais, ativismo do Estado... Tudo bem, é possível que essas coisas tenham tido algum papel. Mas, para mim, é claro que a educação teve um papel numa escala de grandeza acima de todas as outras coisas. Mais que as políticas para setores da economia, contaram a capacidade de poupar-não os nossos ridículos 17% do PIB, mas sim 35% do PIB - e a capacidade de ensinar aos filhos.
Época -O que o senhor constatou a partir daí?
Pessoa - Que nós, brasileiros, cometemos enormes erros de políticas públicas, erros coletivos, da sociedade inteira. Erros dessa natureza têm, em geral, duas explicações. Uma é de economia política. Pela estrutura de poder e pela natureza das barganhas na sociedade nos anos 1950, gastar em educação não era prioridade. O empresário queria subsídio para a indústria, o aristocrata do campo queria o empregado rural numa situação de subserviência, e o trabalhador organizado das cidades queria aumento de salário. A educação da massa que estava no campo não entrou na agenda. A outra explicação é ideologia, no sentido de como a sociedade enxerga o mundo. A única pessoa que percebeu o problema, lá atrás, foi um economista liberal, Eugênio Gudin. Nos poucos textos que ele escreveu sobre desenvolvimento, enfatizava a educação. Foi um cara meio visionário. Mas a visão de mundo dos intelectuais brasileiros era achar que o subdesenvolvimento era fruto de nossas relações com o mundo, de algum mecanismo de exploração. Isso vem desde o Brasil Colônia. Observar a educação exige olhar para dentro, para seus próprios problemas. Reconhecer que o problema está dentro de nós é algo que a esquerda não consegue fazer, pelo modelo mental formado numa certa leitura de Marx. Digo "certa leitura", porque o marxismo não olhava o mundo dessa forma, não olhava o capitalismo como relação de exploração entre países. Até hoje, a esquerda tem muita dificuldade em aceitar que a baixa qualidade da educação é o maior obstáculo a nosso desenvolvimento. Isso significa dizer que, provavelmente, as multinacionais não exploram a gente, o resto do mundo paga por nossos produtos o que tem de pagar mesmo, nós nunca fomos explorados e somos pobres por causa de erros dramáticos de políticas públicas cometidos nos últimos séculos.
Época - O que motivou outros países a adotar essa prioridade?
Pessoa - Não sei bem o que motivou a Coreia do Sul. Na Europa Ocidental, no século XIX, a educação não tinha como objetivo o desenvolvimento econômico. Foi meio sorte. Na segunda metade do século XIX, os Estados nacionais europeus resolveram dar educação primária, um pouco como reação ao período napoleônico. As mudanças tecnológicas com a segunda Revolução Industrial também favoreceram a educação. Mas não havia uma relação estabelecida entre educação e desenvolvimento. Era uma questão de inclusão social, de construção de uma nacionalidade, de unificação linguística. A escola pública era uma forma de o Estado entrar na casa das pessoas. No Japão, também foi assim. Nos Estados Unidos, era uma questão mais religiosa, de leitura da Bíblia.
Época - Há alguma mudança em andamento no Brasil?
Pessoa - Essa questão no Brasil está sendo resolvida. O país percebeu o problema. A situação começou a mudar quando viramos uma democracia - hoje, o Brasil é uma democracia muito dinâmica e aberta. A população tornou a educação uma questão importante. Hoje, quem manda é o eleitor mediano, um cara pobre.
Época - O Brasil tem hoje um governo que se identifica como de esquerda, que continua adar prioridade à indústria e às políticas setoriais. Algo mudou mesmo?
Pessoa - Percebi que economista de direita é que se preocupa com educação. Isso vem desde o (Carlos) Langoni (presidente do Banco Central entre 1983 e 1985). Era um conservador, ligado à ditadura, que nos anos 1970 ficou batendo na tecla da educação. Ele foi detonado pela esquerda brasileira. No livro A controvérsia sobre a distribuição de renda no Brasil, de 1974, com prefácio do Fernando Henrique Cardoso e capítulos de Maria da Conceição Tavares, José Serra, Pedro Malan, Edmar Bacha, todo mundo vai meio batendo no Langoni. Entendo a radicalização política que havia na época, mas é uma pena que ela tenha impedido um debate mais profundo sobre educação. Os intelectuais não olharam com a profundidade devida a mensagem do Langoni. Ela só foi recuperada nos anos 1990 pelo Ricardo Paes de Barros (economista, secretário de Ações Estratégicas do governo Dilma). Desde os anos 1950, temos essa coisa engraçada: economista de direita defende a educação, economista de esquerda defende a indústria. É como na frase de Joãosinho Trinta: quem gosta de indústria e chão de fábrica é intelectual. O salário médio no setor de serviços é igual ao da indústria. O trabalho no setor de serviços é muito mais agradável, leve, urbano, com horário flexível. Tem gente boa-o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, o professor Dani Rodrik, de Harvard - que diz que a indústria gera mais progresso técnico. Acho controverso. Não conheço evidências empíricas fortes de que a indústria gere progresso e inovação mais rapidamente. Como a esquerda no Brasil tem essa visão de mundo, ela tem um programa econômico muito ligado aos interesses empresariais. Reconheço que no governo Lula houve um esforço para melhorar a educação e que a passagem de Fernando Haddad pelo Ministério da Educação foi positiva. Ele recuperou uma série de coisas que Paulo Renato (Souza, ministro da Educação no governo FHC) havia feito e que a primeira gestão de Lula havia destruído. Com a ida de Guido Mantega para o lugar de Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e a eleição de Dilma como presidente, apareceu um quê de Geisel e Getúlio na política econômica.
Época - Como o senhor avalia as medidas que o governo tomou para proteger a indústria?
Pessoa - Dilma está fazendo muita coisa legal. O governo é uma surpresa positiva em vários sentidos. A velocidade OS com que ela aprovou as mudanças na caderneta de poupança foi surpreendente. Era uma questão pendente desde os anos 1980. Todo político tinha medo de mexer (porque isso reduziria a rentabilidade da poupança). Quando ela mexeu, não aconteceu nada. Ela explicou tudo à sociedade (que o retorno da poupança precisaria cair conforme caem os juros no país), e a popularidade dela não caiu. Ela mostrou enorme habilidade política. O fundo de PENSÃO complementar para os funcionários públicos (exigindo que os novos funcionários públicos contribuam a mais se quiserem aposentadorias maiores) é outra medida de estadista, para o longo prazo, que terá muito efeito para nossos filhos e netos. Acho que ela tentará também simplificar o PIS-Cofins, o que é importante. Mas acho ruim o conjunto de medidas tópicas. Várias alíquotas de importação subiram. Há uma tentativa de segurar o preço da gasolina por meio da Petrobras. Como isso prejudica o álcool, aí é preciso compensar os produtores de etanol com incentivos. Há uma tentativa de incentivar a venda de automóveis. Reduz-se o IPI dos carros, mas isso derruba a receita. Então, o governo precisa compensar cobrando de outro setor. Esse microgerenciamento da política econômica praticamente torna inviável o cálculo do empresário. Se você vai investir num setor no Brasil, precisa colocar no seu plano de negócios a possibilidade de o IPI subir, porque o governo precisa compensar um problema de algum outro setor que não tem nada a ver com o seu. Ou um concorrente seu recebe um monte de benefícios e você quebra, como ocorreu com o álcool. Essa mão pesada impede que o setor privado floresça.
Fonte: Época - 01/09/2012