O consenso de Brasília
Cristiano Romero
A recente altercação entre a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi motivada mais pelo momento eleitoral do que pela discordância de teses e programas dos dois líderes. Dilma precisava falar à militância do seu partido, o PT, que está incomodado com várias decisões do governo. Na essência, entretanto, ela está fazendo um governo que não foge do figurino adotado por seus dois antecessores - Luiz Inácio Lula da Silva e FHC.
FHC, que governou o país entre 1995 e 2002, liderou o plano de estabilização, quebrou monopólios estatais, fez a primeira reforma da PREVIDÊNCIA social, promoveu privatizações, federalizou e alongou o perfil das dívidas dos Estados, instituiu a Lei de Responsabilidade Fiscal, deu autonomia operacional ao Banco Central (BC) e adotou o tripé de política econômica - metas para inflação, câmbio flutuante e superávit primário das contas públicas - que prevalece desde 1999.
Lula, que também governou o país por dois mandatos (2003-2010), redobrou a aposta no tripé herdado de FHC. Aumentou o superávit primário, fortaleceu o regime de câmbio flutuante (ao acumular reservas cambiais) e também deu autonomia ao BC para perseguir a meta de inflação. Não por acaso, logrou a menor média inflacionária desde o início do Plano Real: 5,78% ao ano, face a 9,24% da Era FHC.
Governos FHC, Lula e Dilma seguem ideário muito parecido
Mesmo retirando da conta o ano de 1995, que, por efeito estatístico, carregou parte da hiperinflação dos primeiros seis meses de 1994, quando o Real foi lançado, a média de FHC é maior que a de Lula - 7,36%. Retirando-se também 2003, que em grande medida refletiu inflação contratada pelo governo anterior, a média anual do IPCA nos anos Lula cai para 5,28%.
Lula não avançou nas privatizações, mas tampouco retrocedeu. Em seu governo, a gestão de sete rodovias federais foi concedida ao setor privado. No setor de telecomunicação, autorizou-se, por meio de decreto presidencial, a formação de um oligopólio - a fusão de duas (Telemar e Brasil Telecom) das três grandes operadoras de telefonia fixa criadas com a privatização de 1998.
O presidente petista empreendeu também, na área previdenciária, as reformas que FHC não conseguiu fazer: a cobrança de contribuição previdenciária dos inativos e o fim da aposentadoria integral dos funcionários públicos. A primeira está valendo, mas a segunda Lula desistiu de regulamentar por causa de acordo firmado com as centrais sindicais em meio ao escândalo do mensalão.
O que diferenciou a gestão econômica de Lula, quando comparada à de Fernando Henrique, foi uma política salarial mais generosa para o funcionalismo. Mas, mesmo nesse caso, é preciso fazer algumas ponderações.
FHC assumiu o poder no primeiro ano do Plano Real. A queda abrupta da inflação criou um constrangimento fiscal: as despesas do governo, que antes eram corroídas pela inflação alta, passaram a crescer em termos reais. Por causa disso, em 1995, o déficit público foi a 7% do PIB, algo impensável nos dias atuais. Para enfrentar o problema, FHC elevou a carga tributária e segurou os investimentos públicos e os salários dos funcionários.
Quando assumiu, Lula também controlou investimentos e salários. E fez isso porque era necessário: o país vivia sob grave crise de confiança, com risco de descontrole inflacionário. Somente depois de aumentar o superávit primário e elevar a carga tributária, Lula teve condições de melhorar os salários dos servidores, o que fez, sem constrangimento, em seu segundo mandato, inclusive, em meio à crise mundial de 2009.
O que mudou na gestão Dilma? A presidente retomou a agenda de privatizações abandonada por Lula. Fez isso de forma radical ao incluir o que nem FHC nem Lula sonharam em entregar ao setor privado: a concessão dos três maiores aeroportos do país. E está indo além: vai privatizar rodovias, ferrovias e portos.
Dilma recuperou, também, o projeto que acaba com a aposentadoria integral do funcionalismo. Impôs sua força no Congresso e aprovou a medida ignorando o muxoxo de colegas de partido. Ainda no campo dos servidores públicos, arrochou os salários na primeira metade do mandato e enfrentou as greves com rigor thatcheriano. Para não dizerem que foi totalmente inflexível, concordou em reajustar os vencimentos em 15,8%, mas em três anos (o equivalente à inflação esperada para o período).
A presidente aproxima o ideário de sua gestão ao de FHC. Não se trata de afirmar que ela faz um governo tucano, mas é este o ponto: Fernando Henrique, Lula e Dilma, com pequenas variações, seguem um consenso que, aparados estilos e ênfases, governa o país há quase 20 anos. Nesse consenso, não há espaço para extremos, o que está em linha com a tradição brasileira. Politicamente, pode-se dizer que são governos de centro-esquerda, de inspiração social-democrata.
É verdade que, se há semelhanças entre o que Dilma vem fazendo e o que FHC e Lula fizeram, há também diferenças. A presidente, por exemplo, flexibilizou a gestão do tripé de política econômica - o regime de câmbio flutuante foi abandonado; a meta de inflação deixou de ser um objetivo precípuo; a principal meta do governo é reduzir a taxa de juros. Na área comercial, a presidente também tem feito o que Lula e FHC rejeitaram: proteger a indústria nacional, a qualquer custo, da competição estrangeira. Há um risco considerável nessas escolhas, embora não se possa falar, ainda, em ruptura.
O consenso de Brasília é muito parecido com o de Washington, amaldiçoado desde sempre por petistas e mesmo por tucanos à esquerda. Com poucas exceções, o país segue os dez mandamentos que, no início dos anos 90, o economista americano John Williamson identificou como necessários para nações, como o Brasil, superarem o modelo de substituição de importação e a crise da dívida dos anos 80.
Está tudo lá: disciplina fiscal; reorientação dos gastos públicos (para saúde, educação e infraestrutura); reforma tributária (com ampliação de base de arrecadação e maior peso dos impostos indiretos); liberalização financeira; unificação das taxas de câmbio; câmbio competitivo; liberalização do comércio; abertura para o investimento externo direto; privatização; e desregulamentação.
Fonte: Valor Econômico - 12/09/2012