Privatizar ou estatizar?

Ao Estado compete a defesa e a promoção do desenvolvimento econômico e social. Ao setor privado, o que interessa é maximizar o lucro das empresas.

Amir Khair

1. Estatização.Em decorrência da crise mundial de 1929, ocorreu no Brasil o combate à depressão, marcado pela aceleração da industrialização e pela substituição das importações, com significativa intervenção do Estado na vida econômica e social, vasta expansão dos serviços governamentais e estruturação de setores estratégicos. Essa experiência não se afasta daquela de outros países, quando a industrialização e os conflitos gerados pela desigualdade de seus frutos provocou também a presença do Estado no âmbito das legislações previdenciária e do trabalho. É da era Vargas a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (1940), Vale do Rio Doce (1942), Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (1945), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o BNDE (1952) e a Petrobrás (1953). O processo de criação de empresas estatais ocorre inclusive durante o regime militar (1964/85), em setores estratégicos, mas também em áreas de menor importância como hotelaria e supermercados.

2. Privatização.Novas crises econômicas mundiais fazem emergir a crítica ao funcionamento do Estado e à sua capacidade de prover políticas públicas, pelo seu gigantismo, ineficiência e burocratismo. Esse debate fertilizou o terreno para a implementação de medidas, dentre elas, as vá-rias formas de privatizações e desregulamentações. A privatização iniciou-se com Collor em 24 de outubro de 1991, com a venda da siderúrgica Usiminas, uma das mais lucrativas entre as estatais. Várias siderúrgicas e petroquímicas se seguiram. No governo Itamar Franco (1992/1995), concluiu-se a privatização de empresas do setor siderúrgico e petroquímico e foi leiloada a Embraer (1994). O governo FHC (1995/2002) adotou as recomendações do Consenso de Washington, que pregava um amplo programa de privatizações.

Foram privatizados os principais bancos estaduais, Light, Vale, Telebrás e Eletropaulo. Os leilões de privatização de FHC apresentaram duas graves falhas: a) uso de moedas podres (títulos da dívida pública cujo valor de mercado era quase nulo e que foram usados para as compras do patrimônio público pelos seus valores de face) e; b) permitir que o BNDES financiasse parte do preço de compra, o que levaria a privilegiar grupos privados específicos. Conversas gravadas na sede do BNDES revelaram esquema de favorecimento de empresas, o que levou à queda do Ministro das Comunicações, do presidente do BNDES, e chegou a respingar no presidente da República, FHC, que também apareceu nas gravações. A maior parte dos valores usados para as privatizações vieram de empréstimos do BNDES e dos fundos de PENSÃO das próprias empresas estatais (como no caso da Vale).

Nos oito anos de FHC, as privatizações atingiram US$ 78,6 bilhões usados para reduzir a dívida pública, que passou de 28% do PIB no seu início a 60% (!) no seu final. Isso ocorreu pelo uso da Selic elevada (média de 21,7%) para não deixar ruir o Plano Real. No governo Lula, 2,6 mil quilômetros de rodovias foram leiloadas em 9 de outubro de 2007. Nessas concessões foi adotado o critério da menor tarifa nas licitações. As empresas vitoriosas ofereceram-se para administrar as estradas por um pedágio seis vezes inferior ao cobrado nas rodovias Anhanguera e Imigrantes, que foram privatizadas na década anterior. Ocorreram, também, outras privatizações: Banco do Estado do Ceará, Banco do Estado do Maranhão, hidrelétricas Santo Antonio e Jirau. 3. Debate.Ganhou novo impulso o debate sobre privatização após a divulgação, no dia 15 de agosto, do primeiro pacote de privatização da infraestrutura, contemplando a concessão para o setor privado nos modais de transporte rodoviário e ferroviário, num investimento de R$ 133 bilhões, bancados na maior parte por recursos públicos (80% financiados pelo BNDES). Alguns afirmaram não se tratar de privatização, pois não ocorreria venda de patrimônio público, e outros que essa passagem para o setor privado em nada poderia ser diferente do que uma privatização.

Creio que o centro do debate não é se a concessão é privatização, mas se o que foi concedido ao setor privado deveria sê-lo ou não. A favor dessa passagem está a incapacidade do Estado em agilizar os investimentos, uma vez que a maior parte dos recursos são públicos, ou seja, não é por falta de recursos que se faz a privatização. Contra essa passagem, o risco do abuso no uso de tarifas, típico do setor privado, com a complacência do Estado, que é incapaz de controlar e fiscalizar o que é concedido. É o que ocorre nos pedágios, especialmente em São Paulo, e nas prestadoras de serviços públicos, que lideram as reclamações nos órgãos de defesa do consumidor. 4. Novos tempos.O mito mercado desabou com a quebra do Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, o estopim da maior crise desde 1929. Se não fosse o Estado, o sistema capitalista rui-ria a partir do colapso generalizado do sistema financeiro, que o neoliberalismo acreditava que se autorregularia em face das crises. Agora, mais do que nunca, se impõe uma rediscussão do papel do Estado e da iniciativa privada na economia e na sociedade.

Ao Estado compete a defesa e a promoção do desenvolvimento econômico e social. Ao setor privado, o que interessa é maximizar o lucro das empresas. Objetivos diferentes e por vezes antagônicos. Nessa crise, esses objetivos foram expostos. O que protegeu a economia e o emprego foram as ações desencadeadas pelo Estado, por meio de suas instituições oficiais de crédito, junto com estímulos à economia feitos pelo BNDES, Banco Central e governo federal. Em lado oposto, situou-se o sistema financeiro privado, que, à semelhança do que fez internacionalmente, trancou o crédito e elevou os juros. As falhas cometidas nas privatizações de empresas estratégicas, feitas especialmente no governo FHC, e a nova conjuntura internacional impõem novas reflexões e ações. É necessário discutir o argumento central pró-privatização de que o Estado torna tudo mais caro para a sociedade no confronto com o que pode ser feito pela iniciativa privada. Se o Estado não está preparado, o caminho não é a sua demolição, mas sim fazer com que tenha as condições necessárias para assumir o papel que a sociedade lhe delegou. As fragilidades do Poder Público precisam ser enfrentadas. É necessário que seja construído um plano estratégico de desenvolvimento econômico-social-ambiental e, nele, os instrumentos de implementação. Trata-se de fortalecer e reorientar a ação do Estado, com maior benefício para a sociedade. Transformar o custo elevado de suas ações, o uso indevido de cargos públicos para o suporte político e o populismo de tarifas e preços, que acabam inviabilizando a autossustentação das atividades. Se isso não for enfrentado, quem sofre é a sociedade e a simples passagem para o setor privado pode significar a desistência do objetivo maior, que é ter um Estado a serviço da sociedade, e não o inverso. ✽

Fonte: O Estado de S.Paulo - 07/10/2012