“Erradicar a desigualdade e a pobreza no Brasil é utopia, é como buscar o Santo Graal”
ENTREVISTA MARCELO NERI - Presidente do IPEA
Autor de várias pesquisas sobre a nova classe média, Marcelo Neri afirma que esse segmento da sociedade continua a avançar. E diz que o Brasil dos pobres cresce 550 vezes mais rápido do que os 10% mais ricos
Pouco mais de um mês após assumir a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Marcelo Neri encara o cargo como uma missão e confidenciou sua até então resistência em trabalhar com o governo. “O estômago virava”, disse, em entrevista ao Brasil Econômico, no escritório do instituto, no Rio. A motivação para aceitar o convite acabou acontecendo quando ele participou da reunião da equipe de transição, em2010. “O que ouvi foi música para meus ouvidos”, diz ele, referindo-se à decisão da presidente da República, Dilma Roussef, de estabelecer novas tecnologias sociais, de criar o Brasil sem Miséria e mais recente-mente, o programa “Brasil Carinhoso”, do qual Neri participou já como presidente do Ipea. “Por esses motivos a resistência foi quebrada”, afirmou. E também pela bandeira levantada pelo governo a favor das crianças, causa que ele defende como o caminho para o futuro do país, de fato. Neri diz que o Brasil é hoje a “pátria das mães gentis”, e por ser estutura de poder no governo um matriarcado, há chances de isso fazer a diferença no futuro. No entanto, ele não acredita na erradicação da miséria e da pobreza no país. “É utopia. É um Santo Graal que buscamos e nunca vai chegar. Mas a busca enobrece o espírito”, afirma, enfatizando que a desigualdade é uma marca brasileira porque todos os problemas existentes são coletivos. Mas, se comparado aos demais países dos Brics (formado por Brasil, Rússia, China e Índia), estamos bem melhores. “Somos desiguais mas inte-grados culturalmente. Em todos os Brics a desigualdade vai aumentando e no Brasil está em queda forte”. Segundo ele, o povo brasileiro é o mais otimista do mundo e esse atributo é único.
Para ele, o povo se olha individualmente mais feliz do que coletivamente. Reflexos de questões que Neri não afirma como resolvidas, mas estabilizadas. Para ele, seu maior desafio à frente do Ipea é fazer com que a entidade seja uma espécie de usina de ideias e ações e motivar mais as pessoas. E compara a estrutura que pretende dar às equipes de Rio e Brasília como a de uma seleção, com todos vestindo a camisa do Brasil. Sem querer fazer muitas comparações entre sua gestão e a de seu antecessor, Márcio Pochmann, Neri diz que a forma como o Ipea vinha sendo conduzido é uma questão de perfil. “Prefiro ver como uma Seleção Brasileira que tem gente de vários times que vão jogar pelo Brasil. Pode parecer uma coisa meio básica e meio óbvia,mas não era o que acontecia”, diz. Sobre a nova classe média, fruto de inúmeras pesquisas e estudos que conduziu como economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio, Neri diz que está é uma parcela da sociedade que segue e avança e que o Brasil dos pobres está crescendo 550 vezes mais rápido que os 10%mais ricos. “Acho que a nova classe média é o caminho do meio entre o futuro e o passado. É até mais sustentável do que eu imaginava. Os programas sociais, o crédito ao consumidor são partes disso, mas não as principais. O protagonismo é das pessoas. Nossas projeções até 2014 é de incorporarmos mais 12 milhões à classe C, mais 7,7 milhões à classe AB. Então, o processo continua, apesar da crise externa e do pibinho brasileiro”, diz ele, autor de livros como “A Nova Classe Média”.
Érica Ribeiro e Gabriela Murno
Como surgiu o convite para o Ipea?
Nunca pensei em trabalhar no governo. Sempre resisti, pois o estômago virava. Mas, há algum tempo atrás recebi um convite do ministro Moreira Franco para assumir um cargo na SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos). Já havia recebido outros convites e declinado. O convite do Moreira chegou bem no começo do governo Dilma e respondi que, se fosse para trabalhar no Ipea, topava, mas achava impossível. Foi uma estratégia minha para postergar. Porém, depois ele indicou o meu nome sem falar comigo, quando surgiu a oportunidade. O período de indefinição durou quase três meses, mas acabei vindo para cá.
O que fez o sr. mudar de ideia e aceitar assumir um cargo no governo?
Do ponto de vista pessoal, acho que houve três momentos importantes para que mudasse minha decisão. Um deles foi a minha participação da reunião da equipe de transição, logo depois das eleições em 2010. Nela, a presidente Dilma Rouseff falou sobre a in-tenção de produzir novas tecnologias sociais, disse que os frutos mais baixos já tinhamsido colhidos... Tudo aquilo foi música para os meus ouvidos. Ela deu uma ênfase particular às crianças, uma bandeira que sempre levantei. Estava ao lado do Ricardo Paes de Barros, que já tinha ido para a SAE, e falei: você está ouvindo o que ela está falando? Pode ser que não faça, mas o que pode ser melhor do que isso? O segundo momento foi o "Brasil sem Miséria". Participei da construção e tenho feito programas para o município e o Estado do Rio. No lançamento do "Brasil Carinhoso", fui como presidente do Ipea. Por estes motivos, a resistência foi quebrada. Se não fosse desta vez, não seria mais, pois o Ipea é o único lugar com o meu perfil.
Mas qual é o maior desafio de estar à frente de um instituto como o Ipea?
Acho que o maior desafio é dar conta de todos os desafios. Acho que é uma oportunidade de agir. O desafio é olhar e sugerir, como uma usina de ideias e plataforma de ações. O Ipea precisa motivar mais as pessoas. O Ipea-Rio estava desmotivado. Ao mesmo tempo, precisamos alinhar todos em um mesmo objetivo, pois contribuir com as políticas públicas de maneira direta é o grande movimento. O meu lema é meio anticorporativo: não é o que o Instituto pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo Brasil. Outro desafio é também unir as equipes do Rio e de Brasília. O Brasil é um Estado grande, que tem uma carga tributária grande. Acho que uma instituição como o Ipea ajuda no ganho de eficiência e na efetividade da ação pública. Então, o desafio é cumprir a missão do Ipea, que é ajudar o Brasil a andar.
Quando o sr. fala em usina de ideias, um dos pontos principais é aproximar os ministérios do Instituto, para que isso reflita nas políticas públicas. Como colocar esta questão em prática?
O Rio tem um perfil mais acadêmico. Ele está mais voltado para o mundo e para o Brasil. No nosso país, somos muito fechados para receber e exportar ideias. Um discurso recente da presidente falava em duas partes: "Brasil sem Miséria", que na minha opinião é Brasil velho, e do Brasil da inovação e da competitividade. A primeira diretoria que estabeleci foi a de Inovação e coloquei a Fernanda de Negri, economista de Campinas. Ela estava no Ministério de Ciência e Tecnologia e foi muito bem indicada pelo presidente da Finep. Além dela, o Rafael Osório tem excelente relacionamento como o Ministério do Desenvolvimento Social. Eu também tenho participa do bastante, como um técnico que joga no time, algo meio Renato Gaúcho.
Qual o potencial do Ipea?
Acho que o Ipea tem muito potencial. Acho que poucas atividades têm o ganho de produtividade que podemos ter aqui, pois temos milhões de dados e informações que não são aproveitados. O Brasil é um país de oportunidades. O principal do Bolsa Família, por exemplo, não é o que ele já fez, e sim o que ele pode fazer. Ali estão informações operacionais, como nome e endereço. Os estados cruzam dados e estão lançando uma linha de programas.
Mas qual é a principal diferença entre o sr. e seu antecessor?
É um pouco difícil de falar e não acho confortável. Ele saiu daqui e foi concorrer em Campinas, aí meu estômago revira, porque não faria nem em outra vida. Mas é questão de perfil. Eu fiz meu doutorado nos Estados Unidos, fiz graduação e mestrado na PUC. Acho que aqui rolava muita disputa. Morei na África do Sul, na época do Apartheid, e acho que a diversidade não deve ser usada como uma polarização e um cabo de guerra. Então, acho que o nosso perfil é diferente na questão das escolas, mas não se trata de um Fluminense e Guarani. Prefiro me ver como técnico de uma seleção Brasileira, que tem gente de vários times, mas que todos vão jogar pelo Brasil. Pode parecer uma coi-sa meio básica e meio óbvia, mas não era o que acontecia.
O sr. cita muito a questão do time. Não seria esta a diferença? O sr. joga como técnico de uma seleção, enquanto seu antecessor tinha um olhar mais para dentro?
Posso dizer que olho para o Brasil. O Rio de Janeiro tem um pouco esse perfil, o que já causou problemas, pois olhávamos muito para o país e não para a nossa realidade. Se pensarmos na lista de programas nacionais que foram feitos aqui, temos o Plano Cruzado, o Plano Real, o próprio Bolsa Família, o SUS... Agora é que começam a aparecer políticas locais. O Rio olha muito para o Brasil, e a população sofre com isso. O ex-presidente Márcio Pochmann olha para grupos mais específicos e a minha necessidade é olhar para o país e para grupos não representados, como as crianças.
Qual é a estrutura do Ipea hoje?
O Instituto tem quantos funcionários, qual o orçamento e como os recursos são alocados? Temos 261 pesquisadores e nosso orçamento é de mais ou menos R$ 300 milhões por ano, incluindo pagamento de aposentados etc. Na verdade, ele movimenta mais recursos, porque há atividades paralelas. Por exemplo, estamos abrindo uma rede de pesquisadores da América Latina e entramos com 20% dos recursos. O recurso é de R$ 300 milhões, mas a riqueza é maior, porque trabalhamos com ações e parcerias.
Na sua avaliação, o Ipea precisa de mais pesquisadores? Ou este número é suficiente para o que o sr. pretende implantar?
Acho que é muito cedo para avaliar isso. Meu objetivo, por enquanto, não é crescer, é traba-lhar bem com os recursos que existem. Tenho um objetivo claro para o Ipea de Brasília, que é ter um prédio próprio até 2014, ano em que o Instituto completa 50 anos. Esta é uma meta bem concreta embrulhada para presente. Em 2014, o time vai ter seu CT., além disso, vai estar formado e com as posições definidas.
Mas quais são suas primeiras ações no Instituto?
Estou fazendo um plano estratégico, que fica pronto no final do mês. Nele, estabelecemos o que faremos até 2014, qual o nosso plano de trabalho. E outra meta é 2022, que tem uma metáfora com a Independên-cia do Brasil, daqui a dez anos. Então, são estes os dois horizontes. Estamos mergulhados na agenda para 2014.
Como é a parceria com o IBGE?
O IBGE é um parceiro importante. Porque ele lança os dados, que são públicos e permitem o debate. Sabemos as notas do Ideb por escola, por exemplo, então, temos uma riqueza de in-formações e não nos damos conta. O Ipea tem feito um pouco as vezes de IBGE com as pesquisas de campo. E neste ponto, tenho conversado muito com Wasmália Bivar, presidente do IBGE.
O termo “nova classe média” pegou e vemos que ela está crescendo. Mas para onde ela vai?
Entre o Brasil velho dos pobres, que está crescendo 550 vezes mais rápido do que os 10% mais ricos, e o Brasil novo, que é o país do futuro, temos o país que saiu do século XIX, mas ainda não chegou ao século XXI. Então, acho que a nova classe média é o caminho do meio entre o futuro e o passado. Ela segue avançando e é até mais sustentável do que eu imaginava. Esta sustentabilidade está ligada ao trabalho, que se relaciona à educação, que tem a ver com as mulheres terem menos filhos e cuidarem melhor deles com a ajuda do Estado. São transformações estruturais e, como somos uma sociedade muito dividida, não do ponto de vista cultural, mas econômico, as classes altas não olham o que acontece na base. Os dados são claros, há uma revolução acontecendo no Brasil, que segue o caminho do meio no que diz respeito às políticas públicas e econômicas. Além de uma política social ativa, mas com respeito aos contra-tos. Há crescimento com redução da desigualdade, o que é uma escolha. Não crescemos para depois distribuir, como ocorreu na época do milagre econômico e ocorre em todos os Brics. A redução da desigualdade foi até mais importante para a classe média, do que o crescimento. O Brasil teria que crescer 80% mais para que a pobreza reduzisse como reduziu. Os programas sociais, o crédito ao consumidor são partes disso, mas não as principais. O protagonismo é das pessoas. Pelas nossas projeções, até 2014 incorporaremos mais 12 milhões à classe C e mais 7,7 milhões à classe AB. Então, o processo continua, apesar da crise externa e do pibinho brasileiro.
Há uma comparação da classe média brasileira com a de outros países...
Sim, as pessoas comentam que a classe média é meio pobre. A nossa classificação de R$ 1.750 a R$7.400, uma faixa larga, foi definida a partir da distribuição de renda brasileira. Os dados falam. Essa classe média não é a classe média americana ou europeia. Ela não tem dois carros, não tem dois cachorros. Mas já tem dois filhos, o que é o mais importante. Essa pesquisa mostra que não só a desigualdade, como o PIB per capita, é parecido com o mundo. Fazendo o mesmo exercício para o mundo, achamos cortes de renda parecidos. Por que olhar para os EUA? Mas nós olhamos para os EUA. O mundo é livre, mas a linha de pobreza brasileira é US$ 1,25 e a renda americana, US$ 100 por dia. Os EUA não são o mundo. O Brasil é o mundo na renda, desigualdade, distribuição. Quando mergulhamos no Brasil, encontramos o retrato do mundo.
Os indicadores sociais estão avançando. Como manter esse crescimento?
A educação é muito importante. Investir em infraestrutura, tanto social quanto logística, também. O Brasil é um país que faz muitas políticas sociais ao mesmo tempo em que respeita contratos. O Brasil segue o caminho do meio. Não sei se é o melhor caminho, mas eu até gosto. Não ficamos colados na parede, temos graus de liberdade. Mas todos os movimentos têm que ser muito avaliados, e a função do Ipea é essa. E sempre perguntar se dá para fazer melhor. O Ipea em sua pesquisa avaliou que a cada real gasto como "Bolsa Família", a desigualdade cai 350% a mais, do que cada real gasto com PREVIDÊNCIA. Se você vai atrás das crianças, encontra o futuro do Brasil. E elas são a parcela da população mais pobre. Isso me fascina.
O que precisa ser feito?
Temos metas para 2022 do Ideb, do qual faço parte do corpo técnico. E estas metas funcionam no Brasil. Fomos recordistas em inflação e hoje temos metas.Metas de educação virão ao longo do tempo. Acho que é um trabalho de transformar isso em oportunidades e o Ipea está conectado com isso.
O que te impressiona no atual governo?
Participei de muitas reuniões, de comissões para traçar uma linha de pobreza, pesquisas, muitos projetos, muitos cafezinhos, e nada saía do papel em 20 anos. Em100 dias, a presidente Dilma traçou a linha de pobreza. A imagem que tenho vendo de fora deste governo é a "da mãe gentil".Mulheres que têm preocupação com as crianças. É uma lógica diferente. Na minha conversa com a presidente Dilma, ela falou sobre o perfil dos pesquisadores do Ipea, disse que são os "homens do renascimento", ou seja, a combinação entre cientistas e humanistas. A imagem que é a das mães que mandam e que fazem a diferença. A estutura de poder no governo é o matriarcado, e é isso que pode fazer a diferença no futuro.
Quem é o brasileiro para o sr.?
O brasileiro não é movido por incentivos materiais. E para nós economistas isso é dificil. Não há país menos sensível que o Brasil em relação às condições materiais de vida. O brasileiro é visto no mundo como um povo alegre e que ri das dificuldades. Os brasileiros de baixa renda estão achando que são "os caras", apesar das dificuldades. A riqueza brasileira é isso. Mas o economista é quem calcula, e calcular a felicidade é complicado mesmo. O apelido da economia é "a ciência triste" e fica complicado medir tudo isso. Medir dinheiro, PIB, faz parte. O país está em mudança e em trans-formação. Estamos no meio do caminho e temos que olhar para frente. Há um pessoal vindo lá de baixo e temos que abrir o caminho para o futuro. São vá-rios brasis.
Vamos chegar a um momento em que não teremos nem desigualdade e nem pobreza no Brasil?
Acho que não. Acho que é utopia. É um Santo Graal que buscamos, nunca vai chegar. Mas a busca enobrece o espírito. O povo brasileiro é o mais otimista do mundo. Isso é um atributo. Somos otimistas, o que é ruim para a poupança. Mas so-mos quem somos. Somos o "brasileiro, profissão esperança". E a maioria de nós que morar em um lugar que não é assim vai estranhar. E isso gera algumas dissonâncias. A nota para o país nas pesquisas é bem menor do que a nota que as pessoas dão para a sua vida. Acho que o Brasil tem problemas de ação coletiva: como falta de democracia, comum a países em desenvolvimento. Mas está bem encaminhado. Inflação alta, hoje estabilizada. Desigualdade também é uma marca brasileira. Todos são os problemas coletivos. Somos desiguais, mas integrados culturalmente. Em todos os Brics a desigualdade vai aumentando, e no Brasil está em queda forte.
Como você vê as medidas de proteção do governo para a indústria?
Com o salto que a nova classe média deu, o olhar de uma empresa estrangeira é que o mercado está crescendo, mais a taxa de câmbio. É preciso ver até quando representa um modelo sustentável ao longo do tempo. Quando você valoriza o câmbio e prejudica a indústria, mas beneficia os consumidores. A taxa de câmbio já está em R$ 2.
Fonte: Brasil Econômico - 15/10/2012