Soluções existem. Basta usá-las
Além da fortuna de 44 bilhões de dólares, o investidor Warren Buffett, que mora desde 1958 na mesma casa, comprada por 31000 dólares, e almoça no mesmo restaurante simples, no centro de Omaha, nos Estados Unidos, é famoso por seu bom-senso. Buffett tornou-se bilionário também por ter uma visão clara e simples sobre o funcionamento de coisas complexas. Durante a campanha por sua reeleição, o presidente Barack Obama foi um grande populariza-dor de um dos claros raios ordenadores que saem da mente sem ornamentos de Warren Buffett. Aonde ia. Obama reafirmava seu apoio à "Regra Buffett" , segundo a qual "nenhum americano rico deveria pagar menos impostos do que sua secretária, proporcionalmente aos ganhos de cada um". Obama refraseou o enunciado dando-lhe um revestimento mais dramático de palanque: "Nenhuma família que ganhe mais de 1 milhão de dólares por ano deve pagar um porcentual de impostos menor do que paga uma família de classe média". Por mais enigmáticas que sejam, as distorções do sistema tributário tiveram na formulação Buffett-Obama sua mais límpida e curta definição — aquela que ao fazer o diagnóstico do problema fornece também sua solução.
Há algum tempo, Buffett já dera em um outro problema complexo, o do déficit público, mais de suas ""Navalhadas de Occam" — expressão derivada do cada dia mais citado e imprescindível ensinamento do escolástico medieval inglês Guilherme de Occam, segundo quem, entre soluções equivalentes para um problema, a mais simples é sempre a melhor. Disse Buffett: "Eu sei como eliminar o déficit público em cinco minutos. Toda vez que o déficit ultrapassar 3% do produto interno bruto (PIB), todos os integrantes do Congresso ficam impedidos de candidatar-se à reeleição".
VEJA convidou alguns dos melhores pensadores do Brasil para exercitarem suas afiadas navalhas de Occam sobre problemas nacionais que têm teimado em permanecer como pesos extras, muitas vezes paralisantes, por parecer complexos demais para ser atacados de forma eficiente e imediata. As soluções propostas pelos economistas, sociólogos, educadores e estudiosos de outros campos do conhecimento ouvidos por VEJA têm todas o poder transformador imediato daquelas formuladas pelo americano Warren Buffett. Além de serem expoentes acadêmicos, os estudiosos ouvidos pela revista já ocuparam posições estratégicas na máquina governamental. Portanto, conhecem as questões em toda a sua complexidade. O conjunto é uma fabulosa contribuição, pois ilumina pontos essenciais para impulsionar o desenvolvimento e diminuir a desigualdade no país. O franciscano Guilherme de Occam, com toda a certeza, aplaudiria.
Comecemos por uma dessas navalhadas, dada pelo sociólogo Cláudio Beato. Ele vai ao cerne da questão da criminalidade urbana ao definir, como faz a medicina chinesa, o sintoma como a doença — quando há queixa, há problema. Aplicada ao combate do crime, a proposição de Beato é que as autoridades passem a monitorar, além dos indicadores objetivos de assassinatos e roubos, o sentimento de insegurança das pessoas. Um "medômetro parece abstração acadêmica? Não é. Passar a medir também o grau de medo das pessoas em relação ao crime modifica também a maneira como o delito é combatido pela polícia. Diz Beat"Haveria uma reorientação do trabalho policial. Em vez de combater o crime como quem vai para uma guerra, em que vaie tudo. as polícias seriam valorizadas por priorizar a integridade física e a tranquilidade dos cidadãos".
A navalhada de Joaquim Falcão, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, tem outro alvo: a corrupção. Seu enunciado: "Os governos serão obrigados a pagar em dia". Parece uma medida inócua. Mas quando destrinchada ela revela seu poder. Como se sabe, os governos maus pagadores abrem o flanco para todo tipo de venda de facilidades dentro da máquina pública emitindo os famosos precatórios para rolar a dívida. Os credores, então, se atropelam para receber — o que pode levar muitos anos em alguns casos. Entram em cena os funcionários dispostos a ajudar em troca de propina, e a corrupção abre um sorriso de orelha a orelha. Outro subproduto devastador do fato de os governos atrasarem seus pagamentos: os prestadores de serviço embutem esses atrasos nos preços e as obras passam custar 30%, 40% e até 50% mais. Obrigar os governos a pagar em dia, portanto, derrubaria todo esse esquema nocivo. De uma navalhada só. Falcão calcula que, se os governos de todos os níveis fossem obrigados a saldar seus precatórios, cerca de 92 bilhões de reais seriam injetados na economia brasileira, um estímulo monetário capaz, sozinho, de acrescentar alguns pontos na taxa de crescimento do PIB. É um resultado grandioso para uma ação tão simples: governos que pagam em dia.
Talvez o melhor exemplo de problema considerado insolúvel no Brasil seja o déficit da PREVIDÊNCIA Social, uma bomba-relógio de 94 bilhões de reais programada para explodir daqui a algumas décadas e ceifar as chances de milhões de indivíduos das novas gerações de ter a aposentadoria assegurada na velhice.
O economista Sérgio Besserman formula um elegante "Gedankenexperiment", expressão alemã que define um raciocínio lógico fácil de acompanhar: "Uma pessoa sabe que precisa emagrecer. Ela confirma essa necessidade olhando-se todos os dias no espelho — durante décadas. Mesmo assim nunca encontra forças para decidir fazer dieta. Imagine agora a dificuldade de convencer não um indivíduo, mas toda uma coletividade da necessidade de agir sobre um problema, o déficit da PREVIDÊNCIA, que as pessoas nem conseguem enxergar".
Tão ou mais complexa do que o problema do déficit da PREVIDÊNCIA era a fábrica de inflação que existia no Brasil antes do Plano Real — cada estado gastava quanto queria e financiava seu próprio déficit em um processo ardiloso feito pelos bancos estaduais estatais, que equivalia ao poder de emitir moeda. A navalhada veio com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), promulgada em maio de 2000, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, como parte das reformas estruturais que se seguiram ao Plano Real.
A lei conseguiu impedir que governadores e prefeitos gastem mais do que arrecadam. Também impõe limites aos poderes Judiciário e Legislativo dos estados. Parecia impossível de ser aplicada. Mas a LRF pegou e foi fundamental na redução do déficit público e da dívida pública, como reconheceu posteriormente o próprio ministro da Fazenda, Guido Mantega, como todo o PT, critico inicial do plano.
Outra solução radical e simples para um problema que parecia inaplicável no Brasil acaba de ser desfechada com sucesso: é a Lei da Ficha Limpa, segundo a qual políticos com problemas não resolvidos com a Justiça não podem se candidatar por oito anos. O mesmo vale para quem tiver o mandato cassado, ainda que renuncie antes, para tentar escapar da degola. Ela foi aprovada para estas eleições depois de quinze anos de discussões e manobras de postergação. O que fez com que a lei finalmente saísse do papel para limpar as umas foi o manifesto popular com 1,3 milhão de assinaturas que circulou pela internet, nas redes sociais. A capacidade de pressão da internet sobre governos é uma força de mobilização transformadora cuja eficiência vem sendo testada com sucesso em todas as partes do mundo — da Primavera Árabe no Oriente Médio aos protestos contra a recessão e o desemprego na Europa.
As implicações do surgimento da internet se somam aos impactos de outro fenômeno de massa recente: a ascensão vigorosa da classe média, que fez com que uma massa de 40 milhões de brasileiros passasse a conhecer novas possibilidades, incluindo seus direitos como cidadãos. Com a experiência de quem já implementou dois planos econômicos — é o decano entre os fundadores do Plano Real —, o economista Edmar Bacha alerta para as consequências — benéficas, ressalte-se — desse movimento de ascensão de uma larga parcela da população a um novo patamar. "As ambições e os interesses dessa parcela da sociedade serão fatores decisivos nas mudanças e na implementação de novas leis", afirma. Bacha acredita que o marco da primeira manifestação desse grupo foi o fim da contribuição provisória sobre movimentações financeiras (CPMF). "Foi essa manifestação, ainda que incipiente naquele momento, que definiu o jogo em favor do fim da CPMF. Outras virão. O governo será obrigado a repensar muitas políticas públicas que hoje beneficiam principalmente os mais ricos", diz Bacha.
Um claro exemplo de privilégio que tende à obsolescência em futuro próximo é revelado na proposta do economista André Mediei, que aponta uma grave distorção nas contas do Sistema Único de Saúde. Criado com um bom propósito — garantir o acesso universal dos brasileiros aos serviços de saúde —, o sistema foi distorcido. A classe média mais abastada, que pode pagar plano de saúde e consultas particulares, busca os recursos do SUS toda vez que o tratamento não é coberto pelo plano, através de ações judiciais. Os recursos utilizados para pagar essa conta, que supera hoje os 8 bilhões de reais por ano, fazem falta no atendimento básico, utilizado pela grande maioria da população mais pobre. A contribuição de todos os brasileiros ajuda a pagar um sistema que, no fundo, beneficia mais uns do que outros. Mudar essa situação é o dilema dos governantes. Como alertou o filósofo inglês John Stuart Mill em seu clássico Sobre a Liberdade, magnífica obra fundadora das teses do liberalismo: "Uma das questões mais difíceis e complicadas da arte de governar é determinar o ponto em que começam os males (...) da aplicação coletiva da força da sociedade (...) para a remoção dos obstáculos que estão no caminho do seu bem-estar".
Fonte: Veja - 05/01/2013