No auge. E de saída
Giuliana Napolitano e Lucas Amorim
O banqueiro Roberto Setúbal está no auge -e está de saída. Aos 58 anos, desde os 39 na presidência do Itaú, Setúbal é responsável por um período de crescimento espetacular na história do banco. Em seu mandato, o valor de mercado do Itaú cresceu 40 vezes. Em 2008, costurou, com habilidade ímpar, a fusão com o Unibanco — criando o maior banco privado do país e encerrando um reinado de 62 anos do arquirrival Bradesco. Hoje, o banco tem 15 milhões de correntistas, quase 4 000 agências e pouco mais de 121000 funcionários. Com esse tamanho todo, vive um momento particularmente complicado. Está em meio a um penoso processo de corte de custos, executivos acabam de ser trocados e, com a taxa de juro em seu patamar historicamente mais baixo, ganhar dinheiro está ficando mais difícil. E justamente nessas horas que executivos como Setúbal têm mais valor para uma empresa: com o conhecimento técnico acumulado pelos anos à frente do banco, a experiência de vida necessária para evitar erros simples, o jogo de cintura de quem domina a estrutura da companhia de cima a baixo. Mas Setúbal está de saída. Segundo o estatuto do Itaú, ele logo chegará ao ponto em que é velho demais para liderar: 60 anos. Em fevereiro, para adiar um pouco o processo, o Itaú anunciou uma extraordinária mudança nas regras. Setúbal poderá ficar até os 62 anos à frente do banco (leia mais sobre as mudanças do Itaú na pág. 44). Mas a esticadinha não altera o essencial: em quatro anos, ele perderá qualquer função executiva e terá de passar o bastão.
A sucessão no Itaú simboliza um dilema enfrentado por milhares de companhias no mundo. Num momento em que vivemos cada vez mais — e melhor —, faz sentido desperdiçar o talento de gente na casa dos 60 ou 70 anos? Quando um executivo deve se aposentar e passar o comando à geração seguinte? Em países em que há escassez de trabalhadores qualificados, como o Brasil de hoje, não vale a pena aproveitar o conhecimento de quem tem décadas de experiência? São perguntas com as quais cada vez mais empresas lidam, e que afetam a vida de milhões de executivos que, hoje na casa dos 50 anos, sentem que está chegando a hora de dar, compulsoriamente, um passo atrás na carreira. Pesquisas a que EXAME teve acesso mostram que existe uma clara tendência nas companhias: a de aposentar, sim, os mais velhos — só que cada vez mais tarde. Segundo a consultoria de recrutamento Spencer Stuart, 73% das empresas americanas aposentam altos executivos de forma compulsória. Em 2002, o percentual era de 55%. Mas o número de empresas em que o teto é superior a 75 anos passou de 2%, em 2002, para 22%, atualmente (veja quadro ao lado). No Brasil, 41% das companhias adotam essa prática e o limite é mais baixo — varia, em geral, de 60 a 65 anos, de acordo com um levantamento exclusivo feito pela consultoria de recursos humanos Hõft com 230 empresas.
Não há estudos que mostrem quando um executivo está no ápice de sua capacidade. As pesquisas mostram que, em geral, atingimos a melhor fase do raciocínio matemático dos 20 aos 30 anos. Em 1905, aos 26 anos, o alemão Albert Einstein publicou três artigos acadêmicos que revolucionaram diferentes ramos da física — e começaram a derrubar o castelo erguido 250 anos antes por outro jovem, o inglês Isaac Newton, que aos 24 anos havia descrito a gravitação universal. Nos esportes, obviamente, os jovens imperam. Em outros campos, a relação entre idade e competência é menos linear. Na pintura, o espanhol Pablo Picasso já era um gênio reconhecido aos 20 anos. Pintou uma de suas obras-primas, As Damas de Avignon, aos 26. Mas o francês Paul Cézanne levou décadas até aprimorar sua arte a ponto de ser reconhecido como um dos maiores da história. No caso de executivos e empresários, é igualmente difícil encontrar um padrão. Há empresas que precisam da fúria jovem do empreendedor: as grandes inovações e a ruptura em setores carcomidos virão dele. Em outras, a experiência é fundamental para, por exemplo, lidar com conflitos, fazer reestruturações, colocar companhias numa rota de crescimento estável. Há, inclusive, aqueles que passaram dos 70 anos, mas têm vontade de garotos. Pergunte a Jorge Paulo Lemann, Abilio Diniz ou Warren Buffett.
Se não existe uma regra, por que cada vez mais empresas dizem a seus funcionários quando eles precisam parar de trabalhar sem levar em conta se estão indo bem ou mal? A lógica por trás dessa política é mostrar aos jovens que há espaço para crescer na empresa —em suma, que a fila anda. "A troca de comando precisa ocorrer num momento em que a próxima geração está pronta para assumir o posto, não quando também já está perto de se aposentar, ou cria-se um ambiente desestimulante", afirma John Davis, professor da escola de negócios da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas em gestão e negócios familiares. Se um daqueles jovens em ascensão vê que os altos executivos da companhia em que trabalha ficam no cargo por décadas, até os 75, 80 anos, tende a achar que a chance de chegar ao topo é pequena — a tentação de procurar um emprego em outro lugar é irresistível. Também segundo os defensores desse tipo de regra, o limite de idade é necessário em função da extenuante rotina de um alto executivo no mundo de hoje. As jornadas no escritório podem chegar a 15 horas, as viagens são frequentes: quando uma empresa decide abrir o capital, por exemplo, alguns de seus principais executivos passam uma semana numa maratona de oito a 12 reuniões por dia com investidores estrangeiros, em dois ou três países.
Mas isso justifica mandar um executivo para casa aos 60 anos? Como costuma acontecer, a solução talvez esteja no meio. Nem dispensar quem chega aos 60 nem impedir a fila de andar. E o que cada vez mais empresas, no mundo todo, vêm tentando fazer. Uma pesquisa da consultoria americana AARP, especializada em aposentadoria, mostra que 69% das companhias instaladas nos Estados Unidos planejam usar os serviços desses antigos funcionários — geralmente, na forma de consultoria ou em postos que não requeiram dedicação exclusiva. A fabricante alemã de autopeças e ferramentas elétricas Bosch tem um programa global em que funcionários podem se tornar consultores após a aposentadoria compulsória, aos 60 anos. O projeto existe há dez anos e tem 3 000 cadastrados. No Brasil, passou a funcionar no fim de 2010 e tem 40 profissionais, que já realizaram 80 projetos. Segundo a Bosch, quando possível, é melhor usar os serviços desses profissionais do que os de uma consultoria externa, porque eles conhecem melhor a companhia e, em geral, são mais baratos. "Vou à Bosch de duas a três vezes por semana e no restante do tempo fico em casa", diz Edgar Garbade, que, após sete anos como presidente da empresa para a América do Sul, hoje é consultor. Aos 67 anos, ele afirma que não está mais disposto a enfrentar a rotina e a pressão típicas de um alto cargo executivo —mas não é por isso que quer passar o resto de seus dias jogando golfe. "Uma pessoa não precisa ficar até os 80 num cargo executivo. O ideal é que ela mude de função e continue contribuindo de forma diferente", diz Betania Tanure, consultora especializada em gestão. No Grupo Votorantim, dois ex-presidentes que se aposentaram nos últimos dois anos se tornaram consultores: Carlos Aguiar, da Fibria, subsidiária de papel e celulose do conglomerado, e João Bosco Silva, da Votorantim Metais. Eles não trabalham exclusivamente para a Votorantim — podem prestar serviços para outras companhias, desde que em setores diferentes. "Manter executivos aposentados no grupo não pode ser um prêmio de saída. Queremos ficar com os que efetivamente possam contribuir", diz Gilberto Lara, diretor de recursos humanos do grupo.
Reter os mais velhos é imperioso para empresas que atuam em setores com carência de mão de obra. E, no Brasil de hoje, quem não se encaixa nessa categoria? Um exemplo é o que está ocorrendo na construção civil. Esse mercado ficou praticamente estagnado durante uma década, em razão da falta de crédito e do menor crescimento da renda. Há cerca de dez anos, quando o setor renasceu, não havia engenheiros, arquitetos nem pedreiros em número suficiente para fazer frente à demanda. A solução encontrada pela incorporadora Tecnisa, que acaba de lançar o maior empreendimento do país, um conjunto de 30 prédios localizado na zona oeste de São Paulo, foi contratar mestres de obra e engenheiros aposentados. Atualmente, 10% dos 3 500 funcionários têm mais de 60 anos. Em algumas companhias, a falta de gente é tão grave que é preciso voltar atrás e reescrever as regras de aposentadoria. No ano passado, a fabricante de aeronaves Embraer decidiu acabar com a idade-limite de 65 anos para a aposentadoria, prática que havia sido instituída em 2006. "Treinamos mais de 1000 engenheiros recém-formados na última década, mas percebemos que isso não seria suficiente. Não podemos abrir mão da experiência", afirma Daniela Sena, diretora de recursos humanos da Embraer.
Brigas e ciumeira
As empresas que criam programas sérios para aproveitar funcionários que passam dos 60 anos percebem, na dura prática, como é difícil adaptá-los sem gerar brigas ou ciumeira — e fazendo todos remarem para o mesmo lado. Os especialistas dizem que o maior risco é, justamente, o conflito de gerações: 88% das empresas apontam isso como uma grande dificuldade ao recontratar ou manter veteranos, de acordo com uma pesquisa do professor Peter Cappelli, da escola americana de negócios Wharton. O problema, segundo ele, é que a estrutura organizacional das empresas é pensada para que seus funcionários subam na hierarquia, e não para acomodar quem quer ou precisa desempenhar um papel diferente, como é o caso dos aposentados que voltam a trabalhar em postos menos estratégicos. "Gerir trabalhadores mais velhos requer uma abordagem curiosamente semelhante à que vale para as novas gerações. E preciso comunicar com clareza, dar desafios, envolvê-los nas decisões, reconhecer suas contribuições. E, acima de tudo, valorizar seu conhecimento. E essa, afinal, a principal vantagem de colocá-los para trabalhar ao lado dos mais jovens", diz Cappelli. Por enquanto, poucas empresas conseguem fazer isso. Uma pesquisa da consultoria Economist Intelligence Unit mostra que apenas 14% delas dizem entender claramente as necessidades de funcionários mais velhos. Ou seja, embora haja uma espécie de consenso em torno da necessidade de aproveitar o estoque de experiência de funcionários mais velhos, as empresas ainda patinam na hora de decidir o que diabos eles devem ou não fazer.
Trabalhar até morrer
A discussão sobre a idade certa para parar de trabalhar é recente. Até o século 19, não havia nada remotamente parecido com seguridade social. Ou as pessoas trabalhavam até morrer, ou eram sustentadas por seus parentes. Em 1883, o chanceler alemão Otto von Bismarck criou o que ficou conhecido mais tarde como aposentadoria. Quando completavam 65 anos, os trabalhadores da indústria, do comércio e da agricultura tinham assegurado o pagamento de uma pensão. Os que chegavam até lá, porém, podiam considerar-se afortunados — a expectativa de vida na Europa na época não chegava a 50 anos. Os Estados Unidos, mais tarde, copiaram a ideia para pagar um salário aos veteranos de guerra. No mundo corporativo, a grande mudança ocorreu nos Estados Unidos na década de 50, quando começou a ser instituída a aposentadoria compulsória. Numa época de expansão no pós-guerra, as companhias americanas perceberam que seus executivos mais velhos relutavam em treinar os mais jovens com medo de, ao primeiro deslize, perder o emprego. A varejista Sears resolveu esse problema ao determinar uma idade-limite para seus funcionários — 65 anos, coincidentemente, a expectativa de vida dos homens americanos na década de 50. Como sabiam que teriam de deixar o cargo de qualquer forma, os que estavam perto de se aposentar passaram a pensar, pela primeira vez, em treinar funcionários para substituí-los. Na teoria, a idade-limite ajuda a empresa a ter sucessores preparados — na prática, claro, a coisa é mais complicada.
No caso do Itaú, a aposentadoria compulsória foi alterada de 62 para 60 anos logo depois da fusão com o Unibanco. Portanto, não era novidade para ninguém a necessidade de treinar um sucessor para Roberto Setúbal. Mas a falta de um nome para sucedê-lo forçou o banco a propor uma mudança nas regras. A mudança foi bem recebida — suas ações subiram 8% nos quase 20 dias que se seguiram ao anúncio —, mas o fato é que o problema da sucessão continua (procurado, o Itaú não deu entrevista).
Adaptar-se a uma força de trabalho mais velha será um dos grandes temas para as empresas no século 21.0 motivo, aqui, é a demografia, e não há nada a fazer senão aprender a lidar com ela. Projeções da Organização das Nações Unidas indicam que a quantidade de pessoas com idade entre 15 e 55 anos na população mundial cairá de 61%, em 2010, para 55%, em 2050.
No mesmo período, o grupo de pessoas com mais de 65 anos deverá saltar de 9% para cerca de 20%. Na metade do século, o grupo de brasileiros com até 14 anos será igual ao de maiores de 65 anos. No Reino Unido, já há mais pessoas com idade acima de 60 anos do que abaixo de 18 anos. É uma transformação que afeta, claro, as empresas, mas transformará sociedades inteiras. O exemplo mais óbvio é o do buraco nas contas dos sistemas de previdência, que obrigará governos a aumentar o limite de aposentadoria. Quem colabora com planos de pensão privados terá de refazer as contas para que as contribuições mensais resultem em benefícios para a vida inteira. Em muitos casos, continuar trabalhando, mesmo que menos, será fundamental para garantir a renda nas últimas décadas de vida. "E preciso encorajar os idosos a permanecer empregados e saudáveis pelo maior tempo possível", escreveu, num artigo publicado recentemente por EXAME, o demógrafo e economista americano David Bloom, professor na escola de saúde pública de Harvard.
Finalmente, há uma crescente multidão de pessoas que continuarão trabalhando não porque precisam de dinheiro, mas porque não concebem a ideia de parar tão jovem. No Brasil, a expectativa média de vida está em 70,6 anos para homens e 77,7 para mulheres — mas, segundo as seguradoras, quem chega aos 60 anos tem grande chance de viver pelo menos mais 21. A explicação é que o risco de morrer em consequência de acidentes, violência ou consumo de drogas diminui com a idade. As pesquisas com executivos mostram que oito em cada dez deles estão dispostos a continuar trabalhando após a "aposentadoria", desde que tenham horários flexíveis. Para eles, a hora de liderar talvez tenha passado — mas estão, sim, dispostos a se encaixar. E, tenham ou não percebido isso, as empresas terão de encontrar um lugar para eles. ?
Fonte: Exame - 16/03/2013