Estado bom muda sempre
Por Jorge Felix | Para o Valor, de São Paulo
Uma das placas avistadas nas manifestações de rua em São Paulo dizia: "País desenvolvido não é onde pobre tem carro, mas onde rico usa transporte público". O francês Thomas Piketty, 42 anos, da Paris School of Economics e ex-professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), concorda plenamente com a frase. Vencedor do prestigiado prêmio European Economic Association - concedido por eleição direta entre os seus 3 mil filiados, a cada dois anos, a um economista com menos de 45 anos, cujo trabalho tenha dado "contribuição significativa", teórica ou aplicada, às pesquisas econômicas no continente -, Piketty sentencia: "Nenhum país ficou rico sem antes oferecer serviços de qualidade".
Na entrevista a seguir, Piketty - também premiado como melhor jovem economista de seu país em 2002 - afirma que europeus e americanos estão pagando caro por esses serviços (entre 30% e 50% do PIB) e é justamente por esse alto custo que as contas públicas precisam estar sempre equilibradas. Piketty conhece pouco o Brasil, mas usa o exemplo da França para analisar o desafio de manter um Estado social: "Precisa ser permanentemente reformado, remodelado, a fim de prestar o melhor serviço ao público. Muitas vezes, nos prendemos às conquistas dos anos 1950-1980 e nos recusamos a adaptar o modelo social ao século XXI".
Não são palavras de um liberal., Piketty é um dos nomes de maior destaque no espectro heterodoxo da economia mundial e, desde 1995, está no Partido Socialista, no qual foi um dos conselheiros econômicos de Ségolène Royal, na campanha presidencial de 2007, e de seu ex-marido, o atual presidente François Hollande. Uma de suas principais bandeiras também apareceram nas ruas do Brasil: o imposto sobre grandes fortunas. "Basta ter vontade política", diz Piketty.
Valor: Quem pode salvar a Europa?
Thomas Piketty: A Europa tem muitos pontos fortes. Representa um quarto do PIB mundial, tanto quanto o dos Estados Unidos. Seu modelo social - educação gratuita de qualidade, seguro de saúde universal, aposentadorias, serviços públicos, infraestrutura - é, em muitos aspectos, superior ao modelo americano. Os ativos em poder dos europeus, imobiliários e financeiros, líquidos de dívidas, são os mais elevados do mundo. A dívida pública é historicamente elevada, quase um ano de PIB, mas muito menor do que os ativos, mais de seis anos de PIB, e menor que a dos Estados Unidos ou do Japão. Então, por que a Europa não consegue superar a crise? Porque continuamos a dividir-nos sobre os detalhes, e nos conformamos em continuar a ser um anão político e um coador de impostos. Somos governados por pequenos países em concorrência exacerbada uns com os outros. A França e a Alemanha serão, logo, minúsculas no xadrez da economia mundial, e por instituições comuns totalmente inadaptadas e disfuncionais. Deveríamos mirar numa união política, fiscal e orçamentária: os Estados Unidos da Europa.
Valor: No seu ponto de vista, falhou a receita da austeridade proposta como uma solução para a crise financeira?
Piketty A questão é a seguinte: como se livrar de uma dívida pública que está em torno de um ano de PIB? A experiência histórica mostra que isso, quase sempre, foi feito com uma certa dose de inflação. Você também pode usar o imposto sobre o capital. Mas, em todos os casos, isso exige a união fiscal e orçamentária da Europa. Enquanto o Banco Central Europeu tiver que escolher entre 17 diferentes dívidas públicas soberanas, não poderá desempenhar plenamente seu papel. Se nos contentarmos com a austeridade, vai demorar décadas para reduzir a dívida pública. Foi assim no Reino Unido entre 1815 e 1914, quando se destinaram mais recursos para pagar os juros da dívida do que em investimentos em educação da população. Daí o declínio britânico no século seguinte.
Valor: Além da crise, quais são as principais barreiras para o crescimento na França? Críticos apontam para os problemas estruturais do país. O que ajuda e o que atrapalha?
Piketty: Além da falha na governança europeia, é óbvio que os países europeus, a começar com a França, devem fazer grandes esforços para modernizar seus sistemas tributários e de gastos públicos. O modelo europeu, que demanda entre 40% e 50% do PIB para financiar um Estado social de proteção e qualidade dos serviços públicos, é, fundamentalmente, um bom modelo. Mas precisa ser permanentemente reformado, remodelado, a fim de prestar o melhor serviço ao público. Muitas vezes, nos prendemos às conquistas dos anos 1950-1980 e nos recusamos a adaptar o modelo social ao século XXI, como reformar e unificar o sistema de previdência (particularmente complexo na França) ou em modernizar as universidades, embora preservando a igualdade de acesso, etc.
"A crise é apenas um ramo das ciências sociais. Se a crise fizer os economistas mais humildes e lembrá-los disso, já não será tão mau"
Valor: Como vê o futuro? Como reduzir a desigualdade?
Piketty: Os Estados Unidos estão em um caminho de hiperdesigualdade, enquanto a Europa tem, até agora, se preservado. Mas a Europa sofre de um crescimento demográfico e econômico fraco (que dá demasiada importância aos patrimônios acumulados no passado), e uma concorrência fiscal elevada entre os países (que ameaça seriamente a redistribuição fiscal). Não existe um modelo perfeito. Cada grupo regional deve inventar seu próprio modelo para combater a desigualdade, baseado em sua própria história, sucessos e fracassos observados em outras partes do mundo.
Valor: Acredita que uma reforma fiscal é mais eficaz na distribuição de renda (impostos sobre a riqueza, por exemplo, ou reforma de imposto de renda) que os programas de transferência direta de renda, como o Bolsa Família, do Brasil?
Piketty: Acho que essas duas modalidades de redistribuição são complementares, e não substituíveis. Houve uma moda, nos anos 1990-2010, a favor dos programas de transferências diretas e contra a tributação progressiva. Isso é um erro. O imposto de renda progressivo e um imposto progressivo sobre a fortuna (ou capital) são, os dois, ferramentas essenciais para reduzir a desigualdade de renda e riqueza e redistribuir ganhos [das empresas transnacionais] originados da mundialização. A redução da progressividade fiscal adotada nos Estados Unidos desde os anos 1970-1980 explica em grande parte a trajetória da hiperdesigualdade verificada em seguida naquele país, com cerca de dois terços do crescimento capturados pelo 1% mais rico no decorrer dos últimos 30 anos.
Valor: Uma das críticas mais comuns ao imposto sobre grandes fortunas é que provoca fuga imediata de capitais. Como analisa essa crítica?
Piketty: Esse é um problema muito sério para os países pequenos. Mas para países grandes, como os Estados Unidos, a China, o Brasil, e a União Europeia, é possível adotar uma política fiscal redistributiva. Basta ter vontade política. Por exemplo, na minha opinião, não se deve assinar um tratado de livre comércio sem a contrapartida de troca automática de informações bancárias extremamente rigorosa.
Valor: Qual modelo de taxação sobre grandes fortunas o senhor defende? Como funcionaria?
Piketty; Sou a favor de um imposto sobre a fortuna, anual e progressivo, com base em todos os ativos imóveis, profissionais e financeiros (líquidos de obrigações), realizada direta ou indiretamente, por pessoas físicas. Essa é a única maneira de envolver de maneira correta as maiores fortunas, que muitas vezes pagam impostos ridículos.
Valor: Num país com tamanha desigualdade social como o Brasil, como estabelecer um parâmetro do que é riqueza? Em outras palavras: a desigualdade dificulta a adoção desse imposto?
Piketty: Não conheço suficientemente o Brasil para dizer o que deve ou não ser feito. Só posso dizer duas coisas. Os sistemas de impostos muito progressivos sobre a renda e a fortuna foram adotados nos países europeus e nos EUA quando viviam estágios menos avançados de desenvolvimento que o Brasil de hoje, e isso não dificultou o desenvolvimento deles. Muito pelo contrário. E talvez a ocasião para fazer essas reformas seja durante as crises graves. Em todos os países, as resistências oligárquicas à vontade da maioria são fortes e os interesses privados se defendem com unhas e dentes antes de se submeterem ao interesse geral.
"Nenhum país ficou rico sem antes oferecer à população serviços públicos de qualidade. Isso custa pelo menos 30% do PIB nos EUA"
Valor: As manifestações nas ruas que ocorrem na Europa reclamam benefícios sociais que estão sendo cortados. No Brasil, protesta-se contra serviços precários de saúde, transporte e educação. Como o Estado poderá enfrentar esses desafios? Há um esgotamento do Estado de bem-estar social ou se trata de incompetência?
Piketty: Mais uma vez, não conheço o suficiente o Brasil para julgar. O que é certo é que nenhum país ficou rico sem antes oferecer à população serviços públicos de qualidade. Isso custa pelo menos 30% do PIB (nos Estados Unidos) ou de 40 a 50% do PIB (na Europa).
Valor: Até que ponto o envelhecimento da população dificulta a solução para a crise?
Piketty: Penso que é importante planejar com antecedência os mecanismos de ajuste e de resposta automática ao envelhecimento da população. Se não, levaremos muito mais tempo para reagir e ajustar o sistema, como está ocorrendo na França. As experiências europeias mostram igualmente que é muito fácil reformar um sistema de aposentadoria universal. Basta que se aplique a todos os trabalhadores a mesma regra, da mesma maneira, em vez de manter um sistema fragmentado em dezenas de regimes diferentes.
Valor: Quinze anos depois, qual sua opinião sobre a questão da semana de 35 horas de trabalho adotada pela França? A redução da jornada de trabalho funcionou?
Piketty: É uma questão complicada. A experiência mostra que apenas leis ou acordos coletivos podem reduzir substancialmente o tempo de trabalho para aumentar a licença remunerada, que é um dos principais objetivos do crescimento econômico há muito tempo. Mas essas leis devem refletir o ritmo de crescimento da produtividade e dos salários. É mais fácil reduzir o tempo de trabalho quando o crescimento é forte, como na Europa nos anos 1950-1980, do que num momento em que os salários estão estagnados ou se movem muito lentamente, como na França de 1997-2002, quando foram estabelecidas as 35 horas. Acho que devemos fazer as coisas mais devagar, aos poucos.
Valor: Uma das críticas mais comuns é que a redução da jornada gera inflação.
Piketty: Mais uma vez, depende da taxa de crescimento da produtividade, da redução do tempo de trabalho e das aspirações do poder de compra da população e tempo de lazer. Há um taxa de arbitragem coletiva, é preciso encontrar o ponto ótimo.
Valor: Um de seus estudos mais conhecidos é sobre a relação entre educação e desigualdade social. Qual conselho daria para um país que precisa urgentemente melhorar a qualidade de sua educação?
Piketty: Investir na educação é a chave para tudo. É a principal resposta para o problema da baixa produtividade. Os resultados não são imediatos. Mas, no longo prazo, comprova-se que a produtividade aumenta quando se utiliza o máximo possível da população [ativa] mais qualificada no momento em que a demografia oferece ao país a maior proporção de trabalhadores. Toda a história do desenvolvimento econômico é testemunha.
Valor: No seu ponto de vista, quais são os principais tabus do pensamento econômico que foram derrubados pela crise financeira iniciada em 2007/2008?
Piketty: A economia não é mais que um ramo das ciências sociais, ao lado da história, da sociologia etc. Se a crise puder ter o efeito de fazer os economistas mais humildes e lembrá-los desse simples fato, já não será tão mau.
Fonte: Valor Econômico - 19/07/2013