O bônus demográfico
Gustavo Krause
O século XX passará para a história pelas profundas transformações que marcaram a evolução da humanidade. Sobre o tema, "Era dos Extremos", o denso livro do historiador Eric Hobsbawm, define o século XX como o "século breve e extremado", tomando como ponto de partida o início da Primeira Guerra Mundial (1914), e 1991, ano em que, na visão do historiador, se consuma o fim do império soviético e a ordem mundial bipolar, daí emergindo o mal-estar das incertezas sobre a configuração de uma nova ordem mundial. Para Hobsbawm, a contagem dos tempos não obedeceu ao calendário gregoriano; fatos e eventos é que definiram os marcos da evolução histórica.
De fato, a abrangência e a complexidade das mudanças não permitem estabelecer hierarquia na importância dos seus impactos na vida das pessoas. No entanto, torna-se impossível não atribuir singular dimensão ao fenômeno demográfico.
Com efeito, o fenômeno demográfico do século XX é uma verdadeira revolução que afeta estruturalmente os rumos da sociedade contemporânea. Nesse sentido, duas realidades trazem enormes consequências e graves desafios: a explosão demográfica e o aumento da expectativa de vida ao nascer.
No primeiro caso, qualquer exercício estatístico demonstra o tamanho do problema: de 1960 à 2011, a população mundial passou de três para sete bilhões de pessoas, com uma perspectiva de estabilização em dez bilhões de habitantes até 2020; no segundo caso, embora distribuída desigualmente, a expectativa de vida média no mundo cresceu 20 anos (1950/2010), atingindo 67 anos (65 para homens e 69,5 para mulheres), com tendência crescente.
James Lovelock, autor da "Hipótese Gaia", identifica na explosão demográfica uma moléstia planetária que chama de "praga de gente". No Brasil, a expectativa de vida evoluiu, no período de 1960/2011, de 62 para 74 anos e 29 dias (70,6 anos para os homens e 77,7 anos para as mulheres, segundo dados do IBGE).
Por sua vez, a composição etária da nossa população revela que, em dez anos (2001/2011) houve uma redução do número de jovens de 45,8% para 36%, e um crescimento de idosos de 14,5% para 18%, o que significa um crescimento proporcional de pessoas na faixa produtiva (15 aos 59 anos), que resultam na diminuição da chamada "taxa de dependência". Essa redução (divisão do total de menores de 15 anos e maiores de 60 anos pela quantidade de pessoas entre 15 e 59 anos) representa, na linguagem dos especialistas, o "bônus demográfico", momento singular que passam as nações e propício para aprofundar reformas, redirecionar políticas públicas e, em particular, uma oportunidade passageira (duas a três décadas) para enfrentar o grave desequilíbrio estrutural provocado pelas contas da Previdência.
A propósito, o Brasil vive esse momento. Uma espécie de agora ou nunca. Está no meio do caminho de uma obra inacabada chamada de reforma de Previdência, mas conta, além do bônus previdenciário, com fatores favoráveis ao aprofundamento da referida reforma, tais como: estabilidade política, institucional, bem como a inclusão social de milhões de brasileiros; aumento significativo da presença da mulher no mercado de trabalho; sinais positivos de uma cultura previdenciária das novas gerações; amplo mercado dos setores de vida e previdência a ser conquistado; a existência de marco regulatório e institucional capaz de garantir segurança ao setor; as possibilidades de incorporação à previdência complementar dos trabalhadores do setor público.
Olhar para frente significa não esquecer o passivo gerado pela falência do sistema previdenciário brasileiro: para a maioria, aposentadorias humilhantes e para a minoria aposentadorias privilegiadas; olhar para frente significa não esquecer que em 1940 existiam 31 contribuintes para 1 beneficiário, e que em 2010 a relação é de 1,7 contribuinte para 1 beneficiário. Insustentável.
A cultura previdenciária vai além da cultura financeira. Passa pela proteção pessoal e das famílias. É um movimento cultural que leva décadas, e que deveria começar ainda na escola. Na Europa, por exemplo, a previdência é compulsória. Ainda bem que, apesar de o brasileiro não ter o hábito de poupar - especialmente quando se trata de reservar para o longo prazo -, ganhamos gerações mais cientes das suas responsabilidades em relação ao próprio futuro e à aposentadoria. O perfil do idoso também vem mudando significativamente, com homens e mulheres que, ao pararem de produzir, aposentando-se de vez, acabam se deparando com a realidade de que, para manter seu padrão de vida, os recursos das aposentadorias social e privada nos moldes atuais talvez não sejam suficientes. São "novos velhos", que terão condições de viver mais tempo e com mais qualidade de vida.
O mercado segurador, por sua vez, está atento a esses novos perfis. Mas é preciso fazer mais barulho, aproveitar este momento do bônus demográfico, e criar um "bônus previdenciário", olhando para os gargalos de produtos e segmentos ainda não atendidos, como o desafio do financiamento da renda vitalícia no cenário de juros baixos e aumento da longevidade. Apesar de ainda não haver uma saída clara para esta questão, uma das alternativas em estudo é a transferência do risco para investidores, bancos ou empresas interessadas em um retorno sobre essas operações. Com efeito, as pessoas não ficarão sem recursos após se aposentarem e o Brasil não vai gastar tanto com pagamento de benefícios a aposentados como é feito atualmente. É preciso olhar o futuro e construir o amanhã.
Finalmente, olhar em direção ao futuro significa compreender que as nações progridem porque trabalham muito, estudam muito, poupam e investem muito; significa reconhecer, na expressão de Eduardo Giannetti, o valor do amanhã que é superar o dilema de "por mais vida nos nossos anos ou mais anos nas nossas vidas".
Gustavo Krause é advogado, especializado em direito tributário, consultor de empresas e ex-ministro da Fazenda
Fonte: Valor Econômico - 29/07/2013