Estratégia de crescimento divide heterodoxos
Valor Econômico – 24/10/2013
Por Vanessa Jurgenfeld | De São Paulo e Campinas
A perda de dinamismo do padrão de crescimento da economia brasileira reacendeu entre os desenvolvimentistas - corrente que norteou boa parte da condução da economia nos últimos anos - o debate sobre estratégias para o desenvolvimento socioeconômico do país nos próximos anos.
Enquanto a corrida presidencial antecipada levanta a questão da manutenção, ou não, do tripé macroeconômico, e o possível esgotamento do atual modelo de crescimento - baseado no aumento do consumo interno, por meio do maior acesso ao crédito e de políticas de transferência de renda - é discutido, algumas iniciativas para incrementar o debate no campo heterodoxo têm sido lançadas.
No início deste mês, a Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) fez o tema emergir durante o seu fórum de economia anual. "Uma estratégia para dobrar a renda per capita do Brasil em 15 anos?" foi a questão-chave. Na mesma semana, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que já possui um núcleo de estudos do desenvolvimento econômico, o Cede, realizou o seminário "Perspectivas para o Século XXI" e lançou o Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, numa proposta para reunir em torno do assunto universidades de linha similar de pensamento, como Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"São muitas questões que o Brasil vai ter que avançar pulando as pedras dos rios, como diriam os chineses. E não há uma bala de prata para resolvê-las, porque o Brasil ficou muito atrasado e as questões são muito complexas", diz Luiz Gonzaga Belluzzo, professor do Instituto de Economia da Unicamp. "Precisamos deixar maturar, fazer muito debate, não querer transformar isso numa questão partidária, porque a discussão econômica no Brasil está muito partidarizada. Parece um Fla-Flu. "
Em contraposição aos economistas do 'mainstream', os heterodoxos têm em comum a defesa de um papel relevante do Estado na economia. Entendem que existe uma nova configuração da economia mundial, e que não é apenas macro, da grande estrutura mundial, mas também diz respeito à microeconomia, na forma de reorganização das grandes empresas. Também concordam que há uma nova geopolítica mundial, gerada pelo aumento do poder econômico da China e por um 'modelo asiático' de crescimento de longo prazo, que pouco sofreu com a mais recente crise mundial, na comparação com outros países.
Apesar de revelarem pontos de convergência, os debates mostraram que há diferenças importantes entre os próprios heterodoxos, divididos hoje, principalmente, em duas correntes: os novos-desenvolvimentistas e os social-desenvolvimentistas.
Os novos-desenvolvimentistas defendem principalmente um câmbio flutuante, mas com uma taxa administrada. Isso significa que a flutuação seria livre dentro de uma faixa de valores. O câmbio atual deveria ser desvalorizado, de forma a dar competitividade à indústria. Já há estudos que projetam a desvalorização para R$ 2,90 por dólar. Isso porque entendem que o modelo exportador semelhante ao adotado por alguns países asiáticos pode ser benéfico às empresas brasileiras. Além disso, alguns membros têm sugerido redução nos ganhos salariais reais.
Encabeçada por nomes como Luiz Carlos Bresser-Pereira (FGV-SP), José Luis Oreiro (UnB) e Nelson Marconi (FGV-SP), entre outros, na corrente novo-desenvolvimentista, a política macroeconômica funcionaria em grande medida também como política industrial.
Do outro lado, há os partidários do social-desenvolvimentismo, onde se encontram nomes como Ricardo Bielschowsky (UFRJ/Cepal), Ricardo Carneiro (Unicamp, hoje no Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID), André Biancarelli (Unicamp), entre outros, que não estão de acordo com uma desvalorização muito forte do real, que poderia, segundo eles, destruir ganhos sociais conquistados nos últimos anos. Seria preciso, portanto, uma sintonia mais fina, na qual o câmbio, ao mesmo tempo que estimulasse a indústria nacional, não prejudicasse a continuidade da melhora da renda e do consumo. Além disso, defendem a existência de uma política industrial, não deixando todo o papel do crescimento do segmento exclusivamente à política macro.
"O Brasil precisa de novas frentes de expansão para retomar o crescimento, mas não acho que é preciso diminuir o consumo para aumentar o investimento. Uma coisa complementa a outra, não substitui", diz Biancarelli, da corrente dos social-desenvolvimentistas. Para ele, o país estaria "num impasse, em que o dinamismo gerado pelo modelo que deu certo diminuiu bastante".
Biancarelli discorda da avaliação de que a via externa deva ser a nova frente, como propõem os novos-desenvolvimentistas. "Não é a agenda de mais abertura comercial e nem a agenda de uma desvalorização cambial radical e diminuição dos custos de produção no país às custas do salário", afirma. Ele sugere que a expansão seja feita por investimentos na infraestrutura, especialmente em saúde, transporte e educação. "Esse é o norte: uma frente que melhore a distribuição de renda, que continue o processo civilizatório e que possa ser também uma fronteira de expansão econômica."
Oreiro, do grupo dos novos-desenvolvimentistas, propõe uma polêmica queda dos ganhos reais dos salários. Diz que a taxa real efetiva de câmbio do país, sobrevalorizada em 48%, enfraquece perspectivas de retomada de um crescimento mais vigoroso da economia e dificulta a reindustrialização. O real sobrevalorizado, no argumento do economista, seria inviável para a indústria manter os atuais padrões de ganho real dos salários dos últimos anos e ampliar a sua competitividade.
"Não é algo a ser feito da noite para o dia [...]. Estamos vivendo um momento de realinhamento das taxas cambiais no mundo, invariavelmente isso vai afetar os salários. A redução do ganho real de salários, em torno de 20%, deve ser algo para ser feito em cinco, seis anos", disse Oreiro, no seminário da FGV.
Bielschowsky, da UFRJ, que se identifica com o social-desenvolvimentista, diz que no debate sobre o câmbio, se situa "na coluna do meio". "Sou contra uma taxa de câmbio valorizada, que ajuda a estabilidade de preços e a melhoria da distribuição de renda no curto prazo, mas compromete a competitividade industrial, e contra, também, à ideia de forte desvalorização cambial, que, quando não impacta significativamente a inflação, ajuda a competitividade, mas o faz a custa de deterioração dos salários reais". Destaca que é "favorável a políticas de redução de desigualdades e combate à pobreza pelo fortalecimento do mercado de trabalho, como salário mínimo, formalização, e por proteção social universal, como previdência, educação e saúde, em simultâneo a políticas de desenvolvimento produtivo, como políticas industriais, de inovação, e de infraestrutura".
Durante o debate em Campinas, Bielschowsky afirmou que existem hoje três "motores" do investimento no país, que devem ser bem administrados em favor do desenvolvimento: amplo mercado interno de consumo de massa, perspectivas favoráveis quanto à demanda estatal e privada por investimentos em infraestrutura e forte demanda mundial por recursos naturais. Ele lançou questões que considera essenciais serem discutidas no momento, como o avanço da propriedade estrangeira, "e até crescentemente chinesa", no Brasil: "O que vamos fazer com elas? Quais serão as institucionalidades para a entrada dos estrangeiros nos recursos naturais? Quais equipamentos estão sendo usados em hidrelétricas? Quais vão ser utilizados nas obras de infraestrutura rodoviária? O que vamos aproveitar de nossa indústria nacional de bens de capital para isso?"
Apesar das divergências, há uma união dos heterodoxos em torno de um objetivo em comum, que é traçar uma estratégia de longo prazo para o país, acreditam os economistas. Marconi, da FGV-SP, diz que as "discordâncias ocorrem somente na margem". "Os dois grupos acham que deve haver investimentos públicos, sobretudo, melhorias em infraestrutura para o crescimento de longo prazo", cita. As divergências ocorrem, simplifica ele, porque um grupo, o social-desenvolvimentista, considera que o mercado interno vai puxar esse crescimento, enquanto o outro, o novo-desenvolvimentista, destaca a necessidade de se buscar, sobretudo, os mercados externos.
Para Marconi, a retomada do debate de maneira mais acentuada não guarda relação apenas com as baixas taxas de crescimento da economia nos últimos anos. "Do ponto de vista político, tem boa parte da sociedade que clama por políticas que não se preocupem apenas com inflação, mas também com políticas sociais. Há grupos na sociedade cada vez mais atentos", disse o professor da FGV-SP. "A sociedade notou que é necessária a participação do governo na economia, não no sentido de dominá-la completamente, ou de tomar todas as decisões, mas para ter uma participação importante na área social, de política públicas e em políticas de desenvolvimento. "
"Não sei se é um movimento político, mas cada um dentro da sua tarefa, ou no governo ou na academia, acha que tem espaço hoje para ser mais ouvido", afirma Fernando Sarti, diretor do Instituto de Economia da Unicamp, referindo-se principalmente à maior abertura dada a novas propostas pela crise de 2008. "Essa ideia de ausência de Estado na economia e de que o mercado daria conta do desenvolvimento; essa ideia de que isso levaria a um padrão internacional convergente, que promoveria o desenvolvimento, tudo desaba com a crise de 2008. Isso deu mais espaço para uma visão alternativa sobre desenvolvimento, intervenção pública, novas propostas de política", diz Sarti. "As pessoas de alguma maneira estão tentando entender essa crise e pensando em padrões alternativos."
Para Sarti, as manifestações de rua mostraram que a população quer mais saúde, mais transporte público, mais mobilidade. "Todos queremos, mas isso significa mais custos. E quem é que vai bancar? De que saúde estamos falando, uma privada ou uma pública? Vai haver subsídio para transporte? Não é uma questão trivial. Tudo isso que estamos falando é padrão de desenvolvimento." (Colaborou Luciano Máximo, de São Paulo)