As urgências do desejo e suas dívidas
Por Eliana Cardoso | Para o Valor
A ficção, ao exibir imensa variedade de tipos humanos, desafia o economista, cuja ciência se contenta com um único personagem: o homem racional. De forma deliberada e a partir de preferências estáveis e coerentes, esse homem maximiza apenas o próprio interesse.
Respondendo à crítica de que essa figura ignora inúmeras facetas humanas, o economista lembra que trabalha com a abstração necessária aos bons modelos. O seu mapa, ele supõe, lhe permite aproximações úteis para prever o comportamento econômico.
Entretanto, psicólogos e economistas coletaram evidência mostrando vários fracassos na predição baseada no axioma da racionalidade e identificaram desvios sistemáticos das hipóteses de estabilidade e coerência das preferências do "homo oeconomicus".
A economia do comportamento - embora ainda sem um paradigma capaz de abarcar o modelo tradicional - oferece um novo personagem: a figura do homem dividido, velho conhecido de filósofos e ensaístas. O Prêmio Nobel de Economia Daniel Kanneman deu-lhe vida econômica no livro "Pensar: Depressa e Devagar", reconhecendo a divisão de nossa mente entre um sistema afetivo - rápido, inconsciente, automático e destituído de esforço - e um sistema analítico - vagaroso e consciente, que pesa consequências e exige esforço.
Não economistas reconhecem essa divisão desde Platão, que, no "Fedro", descreveu a alma humana como uma carroça puxada por dois cavalos alados. O condutor da carroça corresponde à razão; um dos cavalos, aos apetites e desejos; o outro, à civilidade e ao heroísmo. O mito viera talvez do Egito ou da Mesopotâmia, mas Platão o reformulou. Freud, ao ressuscitá-lo, concebeu a psique como dividida entre ego, id e superego.
Diferenças à parte, a complexidade da mente não escapou ao fundador da ciência econômica. Embora a tradição se concentre na "Riqueza das Nações", Adam Smith escreveu também "A Teoria dos Sentimentos Morais", obra que continuou a rever e reeditar até pouco antes de sua morte. Se na "Riqueza das Nações", Smith parece fazer o elogio do autointeresse, na "Teoria dos Sentimentos Morais", escreve que a grande lei é "amar a si mesmo na mesma medida em que se ama o vizinho". A ênfase da obra recai nas atitudes e intuições sobre o bem e o mal. Smith diz que, ao sermos socializados, introjetamos um juiz que observa e avalia o que pensamos e fazemos. Esse juiz é irmão do superego de Freud, embora nascido dois séculos antes da invenção da psicanálise.
Ao ver a origem de nossos sentimentos morais no processo pelo qual nos colocamos no lugar do vizinho, Smith acredita que somos capazes de experimentar simpatia uns pelos outros e, portanto, não se surpreenderia com o resultado do jogo do ultimato, um dos preferidos da economia do comportamento. O árbitro oferece US$ 1 mil a dois indivíduos, desde que eles concordem quanto à parcela que cabe a cada um. No cara ou coroa, o árbitro decide quem fará a proposta. O indivíduo que recebe a oferta pode aceitá-la ou recusá-la. Se a aceita, cada um recebe a quantia acordada. Se a recusa, nenhum dos dois recebe coisa alguma. Um indivíduo racional abre o jogo oferecendo uma quantia mínima ao outro jogador, que (sendo racional) a aceita, porque ela é melhor do que nada.
Mas não é assim que a maioria das pessoas procede. Nos experimentos, dois terços dos jogadores oferecem entre 40 e 50% da quantia total. E mais da metade dos jogadores recusa ofertas pequenas. Repetido milhares de vezes, o experimento ilustra como o homem valoriza a justiça distributiva.
Os sentimentos morais também estão presentes na relação entre devedores e credores, que, guiados pela moralidade comum, repetem comportamentos antiquíssimos. O exemplo clássico de como o ódio e a vingança se misturam na busca do lucro se encontra no "Mercador de Veneza" de Shakespeare. Naquela época, consideravam-se virtuosos alguns modos de ganhar dinheiro, como a atividade do mercador Antônio, que arriscava sua carga no transporte marítimo. Outros métodos eram pecaminosos, como os de Shylock, que emprestava a juros.
Bassanio, amigo de Antônio, precisa de dinheiro para fazer a corte a Porcia. Como o capital de Antônio se encontra aplicado em navios e carregamentos, ele não tem dinheiro à mão para emprestar a Bassanio e concorda em ser fiador do empréstimo vindo de Shylock.
Shylock, que sofrera grosserias de Antônio nos negócios, exige fiança. Caso o pagamento de Bassanio falhe, Shylock quer não os bens de Antônio, mas meio quilo da carne do seu peito, desprezando o fato de que a vida de Antônio, não sendo bem passível de sequestro e transformação em dinheiro, nenhum lucro lhe garante.
Antônio encarna o desinteresse ao emprestar sem juros e servir de fiador ao amigo. Shylock encarna a cupidez ao emprestar a juros e se preocupar apenas em fazer mais dinheiro. Shylock odeia Antônio, que, emprestando sem ônus, desvaloriza o dinheiro, fazendo baixar a taxa de juros em Veneza. Ainda assim, Shylock nem de longe representa o banqueiro racional, pois quebra a regra mais elementar do código creditício: a de que a pessoa do devedor deve ser preservada.
A racionalidade, a menos que a esvaziemos de qualquer conteúdo, colocando, como se fosse possível, as emoções entre os interesses que o homem maximiza, não nos permitiria entender a decisão econômica de Shylock. Ao querer vingança e exigir sangue, ele se vê impedido de realizar seu lucro.
Por outro lado, o desejo de Antônio de ajudar o amigo e o cálculo inadequado dos riscos que suas mercadorias corriam no oceano o levam a assinar um contrato que dificilmente caberia nos parâmetros definidos pela expectativa racional.
Miopia e desejo de gratificação imediata também prejudicam a racionalidade. Muitas pessoas e governos, como o Fausto da literatura, parecem programados para engolir o fruto de hoje sem pensar nos dias infrutíferos que virão. A psicologia evolutiva nos lembraria que esse comportamento fazia sentido quando éramos caçadores na idade da pedra, milênios antes da invenção da poupança para a aposentadoria.
Entretanto, não podemos reduzir a interpretação das dívidas à necessidade de gratificação imediata e à miopia em relação ao futuro. O fundamento psicológico que sustenta a elaborada arquitetura das dívidas modernas reside também em sentimentos de justiça e retribuição, como os envolvidos no jogo do ultimato. Sem tais sentimentos seríamos incapazes de reconhecer a justiça envolvida em pagar o que tomamos emprestado e ninguém se disporia a fazer empréstimos. Para a dívida existir, precisamos da ideia de valores equivalentes que tornam possível a troca dos valores de hoje pelos de amanhã. O crédito é peça indispensável ao funcionamento da economia. Dinheiro entesourado é desejo congelado. O crédito, ao contrário, se alimenta dos sonhos ainda irrealizados.
Mas o que acontece se o crédito cresce desenfreado e as dívidas se acumulam? Como entender a crise da dívida, que se abateu sobre os países avançados, se negarmos que cobiça e medo têm papel importante nos ciclos dos negócios?
Embora a dívida pública seja a medida direta de solvência do país, o estoque da dívida emitida pelo setor privado também é importante. A dívida pública não causou o colapso de 2008 nos EUA nem a crise da Irlanda ou a da Espanha um pouco mais tarde. Na década anterior a 2008, as dívidas privadas cresceram a um ritmo maior do que o triplo da taxa de crescimento da dívida pública. Na crise, os governos assumiram parte das dívidas do setor privado e a relação dívida/PIB se transformou em fardo pesado demais a retardar a recuperação.
Na origem da crise dos países avançados é possível identificar miopia, desonestidade e falta de supervisão, permitindo que dívidas impagáveis se equilibrassem umas sobre as outras até que o castelo desabou. Quando a maré de liquidez recuou na Europa periférica, a contração do crédito expôs as falhas estruturais da economia e o desemprego avolumou-se. O Brasil poderia passar por experiência semelhante. A principal diferença entre os dois casos é que o Brasil tem flexibilidade cambial e isso ajuda.
Eliana Cardoso é escritora
Fonte: Valor Econômico - 13/12/2013