O país dos anos a mais
Valor Econômico – 28/02/2014
Por David Pilling | Do Financial Times
À primeira vista, Akira Kawahito e Shigenobu Kambayashi não parecem médicos. Mesmo sob o gélido céu azul do inverno, Kambayashi usa sandálias e sobre sua camiseta balança despreocupadamente um estetoscópio, como se fora um acessório de moda. Kawahito, 66 anos, tem os cabelos negros. Os de Kambayashi, 71, são de um cinza prateado. Em ambos, a expressão fisionômica é de quem tem uma boa noção do mundo - e de quem gostou da maior parte do que viu. Apesar de passarem grande parte do tempo ocupados com doença e morte, parecem curtir o lado engraçado das coisas, alternando-se em fazer piadas ou cutucarem-se de um jeito brincalhão.
Kawahito, autor do livro "Eu Quero Morrer em Casa", é um batalhador pela causa de acompanhamento médico domiciliar, que tem uma longa tradição no Japão. A atratividade de cuidados comunitários decorre, em parte, de um estigma associado a internar membros da família em asilos - instituições consideradas, pelo menos até recentemente, como apenas para os infelizes abandonados por parentes indiferentes. Esses "exilados" eram por vezes alcunhados de "avozinhos descartados na montanha", por referência a uma suposta prática de outros tempos.
Os filhos, e não o Estado, são considerados os responsáveis por cuidar dos pais idosos, e a responsabilidade muitas vezes recai sobre as noras. Mas com o esgarçamento da estrutura familiar japonesa, que se fez extensiva a vários graus de parentesco, e à medida que mais mulheres passaram a trabalhar fora, o Estado teve que buscar alternativas. Hospitais, por vezes, preenchem a lacuna. O fato de que idosos pagam apenas 10% a 20% de despesas médicas com dinheiro de seu bolso tornou o esquema relativamente acessível às pessoas, embora não para um governo endividado que tenta conter custos. Em resposta, o Estado aumentou os pagamentos que os médicos recebem por visitas domiciliares, num esforço para incentivar o atendimento em casa.
Não é de hoje que Kawahito está convencido de que é melhor para os pacientes passar seus últimos anos e meses em um ambiente familiar do que em algum hospital com atendimento despersonalizado. "Nossa filosofia, ao dispensar cuidados aos idosos, é contribuir para a qualidade de vida deles", diz. "Queremos assegurar que tenham momentos de alegria, que possam comer boa comida e passar mais tempo com os amigos e a família que amam. Estamos menos preocupados com o prolongamento da vida do que com a preservação de sua qualidade." Cerca de um terço dos pacientes de que Kawaito trata é "neta-kiri" (presos ao leito). Muitos têm alguma doença terminal. No último mês de vida, diz, os hospitais frequentemente gastam enormes quantias de dinheiro tentando prolongar vidas. Alguns pacientes e suas famílias querem ganhar cada dia adicional, e isso é bom. Mas alguns não. "Muitos pacientes dizem: 'Por favor, deixem-me ir' ".
A comunidade em que Kawaito trabalha é chamada Yanagihara, uma área desprovida de atrativos, nas planícies do leste de Tóquio. No total, seis médicos revezam-se em turnos, quando dormem na pequena clínica de Kawahito, de onde prestam um serviço de emergência durante 24 horas. "Fazemos parte desta comunidade", diz, movendo o dedo sobre um mapa na parede onde há um pequeno ponto colorido para cada casa visitada. "Ser capaz de curar os males de uma comunidade não é apenas enfrentar doenças, mas olhar todas as coisas em torno."
O envelhecimento do Japão - na verdade, de qualquer país - é invariavelmente apresentado em termos totalmente negativos. É enfatizar o óbvio dizer que em uma sociedade envelhecida há um número crescente de pessoas idosas, uma fase da vida em que nossa cultura focada na juventude encontra poucas características compensadoras. Em contraste com o Japão, assim como na China e na Coreia do Sul, onde as pessoas mais velhas são alvo do respeito nascido da tradição confuciana, na maior parte do Ocidente a velhice é normalmente associada a doença, senilidade e morte.
Se o envelhecimento é uma enfermidade, então o Japão está em seus estágios avançados. Em 1950, apenas 5% dos japoneses tinham mais de 65 anos. Hoje são 25%. Com a exceção de Mônaco, o Japão é a sociedade mais velha no mundo, onde a idade média é de 44 anos. O número equivalente no Reino Unido é 40. Os Estados Unidos são relativamente jovens, com 37 anos. A esse ritmo, em 2035, um em cada três japoneses terá 65 anos ou mais.
À medida que a população envelhece, mais de 400 escolas são fechadas a cada ano e muitas são convertidas em asilos para idosos ou em infraestrutura de lazer. Alguns parques municipais substituíram balanços e rotatórias por equipamento destinado a exercícios físicos para idosos. No interior, comunidades inteiras foram praticamente abandonadas pelos jovens, deixando as gerações mais velhas entregues à própria sorte. A anedota, muitas vezes repetida, de que os japoneses compram mais fraldas geriátricas do que infantis provavelmente não é verdadeira, mas poderá ser fato, em breve, consideradas as tendências atuais. Mas reflete nossa repulsa diante da ideia de um país com mais velhos do que bebês. Quase subliminarmente, pensamos: um lugar assim deve ser uma ofensa à própria natureza.
O Japão não é exatamente o ponto fora da curva que frequentemente supomos. É verdade que a taxa de fertilidade japonesa - 1,41 nascimento por mulher - está bem abaixo dos 2,1 necessários para recompor a população. Mas, de acordo com George Magnus, autor de "The Age of Aging" (a era do envelhecimento), 62 países, onde vive quase metade da população mundial, inclusive o Reino Unido, apresentam taxas de fertilidade abaixo do nível de reposição. O Japão não é, de modo algum, o país menos fecundo do mundo. Têm números ainda menores países como a República Tcheca, Polônia, Eslovênia, Bielorrússia, Bósnia, Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong. Alemanha, Itália, Grécia e Hungria têm quase exatamente a taxa de fertilidade japonesa. A China, com cerca de 1,5 nascimento por mulher, corre o risco de envelhecer antes de ficar rica. Cingapura produz o menor número de bebês no mundo, com 0,79 por mulher. "A característica fundamental das atuais baixas taxas de fertilidade", diz Magnus, "é que são praticamente universais".
O envelhecimento coloca uma série de dificuldades para as sociedades: da manutenção do crescimento econômico à prestação de cuidados adequados e o pagamento de aposentadorias. Os japoneses têm a maior expectativa de vida entre todos os grandes países: os homens vivem em média até 80 anos e as mulheres, 86. O Japão, portanto, está na vanguarda de uma experiência que, mais cedo ou mais tarde, provavelmente será empreendida por diversos países - da Alemanha à China e da Coreia do Sul à Itália. É verdade que o Japão pode ser um caso extremo, devido à sua resistência à imigração em massa. Os japoneses ainda tendem a falar mais sobre como os robôs podem ajudar a cuidar de seus idosos do que sobre a utilidade de filipinos ou indonésios. Mas, em outros países, também a capacidade dos imigrantes de renovar as populações deverá diminuir, à medida que os países mais pobres alcançarem os padrões de vida ocidentais e suas taxas de natalidade caírem, convergindo para padrões mundiais.
Na verdade, a taxa de natalidade japonesa cresceu um pouco nos últimos anos - de 1,27 para 1,41 -, embora isso ainda esteja longe de suficiente para reverter a tendência de longo prazo. Com certeza, não dissuadiu os políticos de fazerem previsões alarmistas. Em relatório, o governo divulgou certa vez que, seguindo as tendências atuais, haveria apenas 500 japoneses no ano 3000. "Se continuarmos assim", disse Chikara Sakaguchi, ex-ministro da Saúde, "a raça japonesa será extinta".
John Creighton Campbell, professor na Universidade de Michigan, dedicou grande parte de sua carreira ao estudo das reações ao envelhecimento no Japão. Ele discorda de alguns colegas que associam o que se tornou conhecido como "hiperenvelhecimento" do Japão a uma inevitável catástrofe econômica - e até mesmo a um colapso civilizacional. Uma virtude da "crise" do envelhecimento, diz, é que acontece de forma lenta e previsível, dando a governos, mercados de trabalho e à sociedade em geral tempo para se ajustar. Por volta de 2017, o número absoluto, embora não o percentual, de pessoas com mais de 65 anos realmente se estabilizará, calcula Campbell, o que significa que os custos associados ao envelhecimento também tenderão a deixar de crescer.
Já no início dos anos, o governo se deu conta do problema do envelhecimento iminente e começou a criar asilos e incentivar a formação de cuidadores. Na década de 1970, foi estabelecido um sistema de saúde praticamente gratuito para idosos. Em 1990, o Japão colocou em prática o "Plano de Ouro", uma expansão dos serviços de cuidados de longo prazo. Dez anos mais tarde, impôs um seguro obrigatório para cuidados de longo prazo. Todos com mais de 40 anos são obrigadas a contribuir. Os recursos financeiros do sistema provêm de impostos e os beneficiários também contribuem, dependendo de suas condições. Mesmo assim, tem havido problemas de financiamento e o governo viu-se obrigado a baixar o nível dos serviços prestados. Ainda assim, Campbell o considera "um dos esquemas mais abrangentes e generosos no mundo".
Como resultado dessas e outras adaptações, argumenta Campbell, o Japão tem um equilíbrio razoável entre prestação de cuidados e controle de custos. Outros países, como o Reino Unido, estudaram o Japão de perto para extrair possíveis lições. Como se sabe, 15 anos de deflação deixaram as finanças japonesas em condição lamentável, com uma relação entre dívida pública e PIB de 240%, a mais elevada no mundo.
No entanto, os gastos per capita com saúde estão entre os mais baixos nas nações avançadas, embora os resultados estejam entre os melhores. Isso se deve, em parte, ao estilo de vida. A maioria dos japoneses pratica uma dieta saudável à base de peixe e consome menos alimentos processados e bebidas açucaradas do que os ocidentais. A obesidade é muito menos comum. Os números também são menores em relação à violência e ao abuso de drogas. Mesmo levando em conta tais fatores, porém, o Japão tem uma excelente relação benefício/custo na área de saúde. A cada dois anos, o governo renegocia as tarifas de reembolso com médicos, hospitais e empresas farmacêuticas - e habitualmente impõe reduções. O atendimento primário de saúde tem prioridade sobre tratamentos especializados - os japoneses visitam seus médicos com muito maior frequência do que os americanos, mas submetem-se a muito menos intervenções cirúrgicas.
O volume de dinheiro que um país gasta com serviços de saúde é determinado mais pelo sistema de provimento do que por seu perfil etário, argumenta Campbell. Assim, a despesa total com saúde nos Estados Unidos equivale a 18% do PIB, enquanto no Japão é de apenas 9,3%. "O encargo econômico dos sempre crescentes gastos médicos é um problema grave para os jovens Estados Unidos, mas não para o velho Japão", diz Campbell.
Uma coisa positiva, no Japão, acrescenta Campbell, é que as pessoas não apenas vivem mais tempo, mas permanecem mais saudáveis por mais tempo. Um estudo da Organização Mundial de Saúde, publicado em 2000, mostra que os japoneses desfrutam, em média, de 74,5 anos de vida saudável, em comparação com 71,7 no Reino Unido e apenas 70 nos Estados Unidos. Outro fator é que as pessoas mais velhas tendem a ser tratadas como membros importantes da sociedade. Em muitas empresas, as hierarquias ainda são regidas em larga medida pela idade.
Em Yanagihara, Kawahito diz que a maioria de seus pacientes em estado grave está perto de 70, 80 anos. Em algumas famílias, filhos de 70 anos cuidam de seus pais de 90 anos. Numa tarde, acompanhei os médicos em suas rondas.
Os médicos sabem tudo sobre seus pacientes, de suas rusgas conjugais a seus esquemas de cuidados diários com a saúde. Terminadas as visitas, Kambayashi compartilhou algumas reflexões. "Os valores cultuados nos anos de expansão acelerada da economia foram errôneos e o Japão tornou-se um lugar difícil para criar filhos", disse Kambayashi, procurando explicar a queda na taxa de natalidade. "Os homens foram os 'guerreiros' do milagre econômico". Às mulheres coube o encargo de cuidar dos idosos."
Agora, esse sistema está sob tensão. Kambayashi considera os recursos do Estado inadequados para prover um cuidado efetivamente humanitário. Um de seus pacientes, por exemplo, solicitou alguém para ajudá-lo a tomar banho. O pedido foi negado. "O único lugar onde você tem o direito de tomar banho duas vezes por semana é a cadeia", resmungou Kambayashi. "Isso é vergonhoso num país tão rico."
O envelhecimento não é apenas algo que acontece aos idosos. Também afeta o tamanho da população economicamente ativa. A tendência da denominada taxa de dependência no Japão parece gritante. Em 1960, havia 11 pessoas em idade ativa para cada pessoa com mais de 65 anos. Hoje, há provavelmente 1,3.
É importante o número de trabalhadores em relação não às pessoas idosas, mas em relação aos não trabalhadores, inclusive crianças e mulheres. Por esse ângulo, a relação de dependência no Japão não parece tão ruim. Pode haver mais pessoas idosas, mas há menos crianças (improdutivas) com que se preocupar e mais mulheres na força de trabalho, ainda que não em número suficiente. Circunstância crucial é que as pessoas estão trabalhando mais. A idade de aposentadoria, 55 anos em meados da década de 1980, está sendo elevada para 65 e, sem dúvida, será novamente aumentada. Na prática, 60 anos é a idade média em que os japoneses param de trabalhar, ou seja, três a quatro anos acima da média nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. As mulheres, assim como os homens, trabalham até uma idade surpreendentemente elevada. Em outras palavras, muitos idosos, no Japão, são tanto produtores como consumidores.
O sistema de senioridade japonês, em que os salários aumentam com a idade, e não com a capacidade profissional, implica que, frequentemente, os empregadores não querem manter funcionários além da idade de aposentadoria. Muitos japoneses, porém, contornam essa rigidez iniciando uma segunda carreira. Alguns são profissionais que continuam recebendo bons salários. Outros trabalham em ocupações mais braçais e menos bem pagas, varrendo folhas em parques, estocando prateleiras de supermercados ou como seguranças em canteiros de obras. É bastante comum ver pessoas em seus 70 anos trabalhando como assistentes em apinhadas estações de metrô em Tóquio ou fritando costeletas de porco em restaurantes.
Makoto Hashimoto, 72 anos, aposentado há 12, tem um emprego de meio período numa locadora de bicicletas em Sakura Shinmachi, no sudeste de Tóquio. Como o Japão está lidando com o envelhecimento?, perguntei. "Estamos um pouco preocupados com a baixa taxa de natalidade", disse. "Qualquer sociedade precisa se renovar, ter filhos chegando em número suficiente. Nós realmente não sabemos qual será o desdobramento disso."
Hashimoto revela-se mais preocupado com a geração mais jovem do que com a sua. O contingente acima de 65 anos controla a maior parte da enorme poupança das famílias japonesas. Em vez de se constituírem em um fardo, os idosos japoneses estão transferindo riqueza para as gerações mais jovens, gastando dinheiro com seus filhos e netos ou deixando-o como herança, ao morrer. "Nós desfrutamos o período de aquecimento econômico", disse Hashimoto. "Meu filho não gozará das mesmas vantagens. Ele está agora com 40 e poucos anos, e as coisas poderão ficar mais difíceis para ele do que foram para mim."
Grande parte do envelhecimento está acontecendo longe das grandes cidades, nas províncias. A idade média dos agricultores japoneses é 70 anos. Mesmo em comunidades não agrícolas, há um número crescente de idosos. Inukai é uma aldeia de 4 mil pessoas na província de Oita, pouco mais de 500 km a sudoeste de Tóquio. Bem mais de um terço de seus moradores tem 65 anos ou mais. Masaya Shin, diretor de escola aposentado, mora lá com sua mulher, Yoshie, numa casa coberta por um telhado tradicional e anexa a um jardim com pinheiros e uma lanterna de pedras.
Shin, pequeno, magro, cabelos curtos, tem 72 anos, mas você nunca desconfiaria disso ao tentar rebater suas agressivas bolas com efeito. Além de tênis de mesa, ele pratica e ensina "kendo", arte marcial em que os participantes se enfrentam com espadas de bambu. Ele é o quinto mais antigo em sua turma. "Nosso lema é: 'Vamos praticar 'kendo' até os cem anos' ".
Shin também frequenta regularmente sessões de "iaido", arte marcial cujos praticantes fazem movimentos controlados com uma espada verdadeira - com gume cego ou mesmo afiado. O "iaido" não é para medrosos: certa vez, um de seus companheiros estava sacando sua espada da bainha quando, acidentalmente, cortou fora parte da própria orelha.
Além de seus passatempos, boa parte do tempo de Shin é ocupado com um trabalho remunerado: ensinar japonês a trabalhadores rurais temporários vindos da China, Tailândia e Filipinas. Também ensina como voluntário, gratuitamente. Gostaria de aprender caligrafia e está interessado na história Meiji local. "Mas há tão pouco tempo...".
Shin pratica um estilo de vida que deixaria esgotados muitos homens mais jovens. "Tudo tem a ver com 'ikigai' ", diz, usando uma palavra japonesa que pode ser traduzida como "razão para viver", algo para manter a mente e o corpo ativos. Tornou-se moda, diz, falar sobre "pinpinkorori", maneira brutal, mas quase cômica, de descrever uma vida ativa seguida de morte súbita. "Cair morto", comenta, rindo. "Essa é uma boa maneira de economizar nas contas médicas." Faz uma pausa para refletir. "Afinal, não queremos ser um peso morto para os jovens." (Tradução de Sergio Blum)
David Pilling é editor de Ásia no "FT". Seu livro 'Bending Adversity: Japan and the Art of Survival' foi publicado pela Allen Lane.