O fim do capitalismo...

Sociedade civilizada depende do jogo entre urna e mercado

03/03/3015

Antonio Delfim Netto

O ilustre professor
Wolfgang Streeck,
atualmente no
Instituto Max
Plank, foi
entrevistado (por e-mail)
pela competente jornalista
Vanessa Jurgenfeld, do Valor.
O resultado foi publicado
numa brilhante página deste
jornal no dia 26 de dezembro.

Streeck é um sociólogo,
historiador e economista
(melhor apetrechado, na
mesma ordem, nas três
disciplinas) que sofreu grande
influência do pensamento de
Karl Polanyi. Trata-se do gigante
historiador-economista
húngaro, que publicou, em
1944, o hoje clássico “A Grande
Transformação” — ele e Simmel –
“A Filosofia da Moeda” – foram a
sensação dos seminários do
professor Heraldo Barbuy na
FEA-USP, em 1949).

Nele se descreve a expansão
da economia de livre mercado
(no período 1830-1930), que
ao mesmo tempo em que
tornava a produção mais
eficiente, gestava a
“mercadização” da terra, do
trabalho e da moeda, criando
tensões sociais que acabaram
impondo a volta do Estado, em
1930, para resolver a crise
produzida pelo “laissez-faire”.

Fundamental é sua correta
insistência “que toda economia
é embebida nas relações
sociais”. “A Grande
Transformação” é obra datada,
mas sua articulação sobre as
consequências da irrestrita
mercadização da “terra, do
trabalho e da moeda”
mostra os inconvenientes
desse processo, os limites dos
mercados completamente
desregulados e explica por que
eles são momentos de exceção
na história do homem.

Para o professor Streeck, “o
capitalismo democrático do
pós-guerra está claramente
desaparecendo desde o fim dos
anos 70” e “há a questão da sua
futura viabilidade enquanto
modo de produção e enquanto
sociedade. Se por uma
sociedade capitalista queremos
dizer a capacidade de extrair
bens e benefícios coletivos ‘da
ordem do egoísmo’ – o
mercado –, podemos já estar
vendo o seu falecimento”.

Na entrevista, ele afirma: 1)
“o capitalismo como tal sempre
foi uma ordem social
fundamentalmente instável. E,
também, sempre foi
contestado” (o que é verdade);
2) “Extrair bens coletivos da
busca privada por interesses
materiais particularistas exigia
instituições políticas
complexas que o capitalismo
foi e é incapaz de criar” (a
história mostra que é meia
verdade, veja o item 4 abaixo);
3) “O capitalismo precisa de
adversários fortes o suficiente
para civilizá-lo” (o que é
verdade. O grande adversário
foi criado pela organização
política do “trabalho” que
recusou sua completa
“mercadização” e inventou o
sufrágio universal, o mais
poderoso instrumento
civilizador dos mercados);
4) “Hoje em dia, nossas
sociedades podem ter perdido
a capacidade de conter e
controlar os mercados e, assim,
tornar o capitalismo
socialmente aceitável” (há
uma contradição, pois no item
2 se afirma que elas nunca
tiveram); e, finalmente,
5) “Parece que os agentes
políticos atualmente estão
ficando sem solução em vários
fronts” (mas, se não for a
política, quem nos salvará?).

Mais desconcertantes são as
conclusões finais do professor
Streeck, que aumentam a
probabilidade de não existir
qualquer solução. Já que o
capitalismo sobreviveu até
aqui, diante de todas as suas
“contradições”, a arguta e
provocadora entrevistadora lhe
perguntou: “Nem mesmo há
movimentos revolucionários
capazes de fazer frente ao
capitalismo”?

Ao que ele respondeu: “No
que se refere às revoluções,
elas são difíceis de serem
organizadas mundialmente.
Vejo muito descontentamento
social que, entretanto é
improvável que seja capaz
de consertar (sic) ou derrubar
(sic) o capitalismo. E não se
esqueça de que consertos
pró-capitalistas nem sempre
são agradáveis. Tivemos uma
série deles na primeira metade
do século XX e, como no
Chile, na segunda metade”.
“Eles incluíram guerras,
regimes ditatoriais e muita
destruição e devastação (e os
do pró-socialismo o que
produziram, pergunto eu?).”

Termina enigmático: “Vamos
ver que medidas virão a seguir,
quando o dinheiro dos bancos
centrais enfim tiver se tornado
demasiado tóxico”...

Streeck deixa no ar (ainda
que rejeite explicitamente) a
mesma e melancólica
conclusão de todos os que
preveem (ou desejam?) o
“fim do capitalismo”. O “caos”
será superado por um
misterioso caminho “não
político”: um ente metafísico
estabelecerá a “ordem”, que
proporcionará a todos a
“liberdade”, a “igualdade” e a
“eficiência” produtiva...

O problema é que a
evidência histórica mostra que
esses três objetivos não são
inteiramente conciliáveis e que
só podem ser perseguidos por
movimentos políticos de
“catraca”: a melhora de um
(liberdade, igualdade,
eficiência) não pode ser feita à
custa da piora dos outros, mas
pelo aperfeiçoamento
institucional que os combine
num nível superior.

Esse é o papel do jogo
entre a urna (cujo
funcionamento depende das
instituições que regulam o
voto, do nível da educação da
sociedade e do
reconhecimento dos limites
dos recursos físicos) e o
mercado (cujo bom
funcionamento exige um
Estado regulador
constitucionalmente limitado).

É assim que nos
aproximaremos da sociedade
civilizada, sem “curto-circuitos”
que sempre a atrasaram e
terminaram mal, porque têm o
endereço errado: exterminar
esse camaleão adaptativo cheio
de problemas, que chamamos
de “capitalismo”...

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Antonio Delfim Netto é professor
emérito da FEA-USP, ex-ministro da
Fazenda, Agricultura e Planejamento.
Escreve às terças-feiras
E-mail ideias.consult@uol.com.br

Fonte: Valor Econômico