A economia da saia justa

A burocracia do Estado passou a adotar a “racionalidade”privada na gestão da coisa pública

03/03/3015

Luiz Gonzaga Belluzzo

No final dos anos 80, arrisquei
alguns rabiscos
sobre James Buchanan,
Prêmio Nobel de Economia
em 1986, um dos corifeus
da teoria da Escolha Racional.
Buchanan disparou críticas
ácidas e claramente hostis às práticas
fiscais e monetárias do que
se convencionou chamar “era
keynesiana”. Não trepidou em
afirmar que as democracias ocidentais
deverão enfrentar a inclinação
dos governos a trabalhar
no vermelho, a gerar déficits em
resposta a demandas dos eleitores
ou de grupos particulares de
interesses.

Buchanan atribui essa inclinação
para o déficit, ou seja, essa facilidade
revelada pelos governos
no atendimento das demandas
dos eleitores e dos grupos de interesse
ao desaparecimento de
dois constrangimentos garantidores
da boa gestão das finanças
públicas na era do liberalismo
clássico, se é que existiu tal coisa.
O primeiro deles é o padrão-ouro,
que impedia o recurso fácil à
emissão monetária para financiar
déficits orçamentários. Os
políticos estavam, assim, obrigados
a escolher alternativas mais
dolorosas para sustentar o aumento
dos gastos.

O segundo constrangimento
era de ordem moral: foi eliminada
a resistência vitoriana às políticas
que descarregam sobre as
gerações futuras os custos de
uma dívida pública crescente. Na
visão de Buchanan, o impacto das
duas guerras teria debilitado os
laços intergeneracionais e tornado
o presente infinitamente mais
valioso que o futuro, o consumo
mais valorizado do que a frugalidade,
a abstinência e a previdência.
Ele escreveu “O dano infligido
pela morte e pela guerra à frugalidade
como virtude moral foi
acentuado pelo fortalecimento
de uma filosofia relativista, desde
os primeiros anos do século XX.
Na medida que a filosofia relativista
invadiu os valores absolutos
da sociedade vitoriana, ganhando
apoio ao longo do século XX,
as barreiras da frugalidade foram
seriamente vulneradas”.

Em 2013, essa tese recebeu
uma contribuição de Niall Ferguson.
No curso do debate com Paul
Krugman a respeito das políticas
de austeridade, o historiador de
Harvard atribuiu ao homossexualismo
de Keynes a valorização
do presente e a depreciação do
futuro. Para isso, valeu-se da frase
de Maynard “No longo prazo estaremos
todos mortos”. Na opinião
de Ferguson, Keynes descurava
do futuro porque não precisava
se preocupar com o destino
dos filhos, netos e bisnetos. Ao
desvendar o “paradoxo da poupança”,
Keynes zombou da falácia
de composição implícita na tentativa
de estender para o conjunto
da economia as virtudes da frugalidade
familiar. O conceito de
dívida sem ônus desterrou na irrelevância
política, por 40 anos, o
temor clássico dessa forma de financiamento
dos governos.

Mesmo depois do casamento
com a bailarina Lydia Lopokova,
o Keynes de Ferguson preferia ler
poesias para a mulher a exercitar
os deveres (prazeres?) do sexo.
Escalavrado pela opinião pública,
o prodígio de Harvard fez
mea culpa. Seja como for, para
Buchanan e Ferguson as regras
da boa gestão orçamentária foram
destroçadas pela ação emoliente
dos ensinamentos de John
Maynard Keynes.

O diagnóstico do "fracasso" da
"era keynesiana" é valioso porque
assinala de uma perspectiva conservadora
a inconformidade com
os conflitos gerados pelas tentativas
de “democratização do capitalismo”.
Não há como discordar de
Jurgen Habermas quanto à indissolúvel
tensão que atravessa permanentemente
as relações entre
capitalismo e democracia.

Acuadas pelo avanço ideológico
e político das forças sociais que
sustentam a reinvenção do liberalismo,
as correntes progressistas
mais consequentes tentam cavar
suas posições nas trincheiras na
democracia participativa, sem
abrir mão dos cuidados e normas
do Estado de Direito.

Seria necessário, porém, investigar
mais a fundo as origens do
contraditório entre “déficit de racionalidade”
e “déficit democrático”.
Em seu livro “Tempo Comprado
– A Crise Adiada do Capitalismo
Democrático”, Wolfgang Streek
expõe as dificuldades impostas
aos governos democraticamente
eleitos, hoje escandalosamente
submetidos aos ditames dos mercados
financeiros e da mídia-empresa.
Esse aprisionamento enseja
a divulgação das banalidades negativas
sobre o Estado do Bem Estar
Social: o cobrador de impostos,
competidor com o setor privado
nos mercados de dívida, causador
da inflação na medida em que financia
o seu déficit com emissão
monetária, exemplo de má gestão
empresarial.

Robert Skidelsky, biógrafo de
Keynes, ironizou o temor de
Hayek, preocupado com a saúde
da democracia afetada pela força
excessiva do Estado. Muito ao
contrário, diz Skidelsky, o Estado
foi fraco para impedir a invasão
das forças da concorrência, ficando
à mercê das práticas predatória
e corruptas que reduzem a autonomia
da gestão econômica.
“Keynes superestimou a possibilidade
de uma gestão econômica
racional pelos governos democráticos”,
conclui.

A história dos últimos 40 anos,
desvela as raízes do déficit democrático.
Aos neoliberais não interessa
reduzir o tamanho do Estado,
senão capturar suas forças para
apoiar a difusão da concorrência
em todas as esferas da vida.

Encarnada na concorrência entre
as grandes empresas oligopolistas
e nos mercados financeiros
enlouquecidos, a “razão privada”
tomou de assalto a esfera pública.
Enquanto conta a fábula “Mais Estado,
Menos Estado” trata de submeter
a seu comando os regimes
fiscais e tributários, espremendo
os recursos destinados a atender às
demandas dos setores mais frágeis
e sub-representados. (Fora as contas
na Suíça).

A burocracia do Estado passou a
adotar a “racionalidade” privada
na gestão da coisa pública e isso
afetou o comportamento dos
agentes públicos, de empresas até
os órgãos encarregados de administrar
a justiça, para não falar das
políticas de saúde, educação,
transporte de massa etc. O projeto
ocidental da cidadania democrática
e igualitária não “cabe” no espartilho
amarrado na ilharga das
sociedades pela “racionalidade”
do capitalismo contemporâneo.

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Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular
do Instituto de Economia da Unicamp e
escreve mensalmente às terças-feiras. Em
2001, foi incluído entre os 100 maiores
economistas heterodoxos do século XX no
Biographical Dictionary of Dissenting
Economists.

Fonte: Valor Econômico