O elefante previdenciário
O sistema previdenciário brasileiro, reformado em 1988 com a nova Constituição, foi um enorme avanço para o país, estabelecendo uma rede de proteção ampla, integrando previdência e assistência social e saúde. Ele foi desenhado para assegurar cobertura a populações desprotegidas, essencialmente idosos, portadores de necessidades especiais e trabalhadores incapacitados. Nesse sentido, o sucesso foi estrondoso.
O Brasil hoje tem cerca de 90% de sua população idosa protegida pelo sistema, contra média de cerca de 30% no resto da América Latina. Outro efeito positivo foi a redução da população abaixo da linha de pobreza e a efetiva inclusão de agricultores familiares na rede de proteção social.
O sucesso do sistema, infelizmente, também é a raiz de seus problemas.
Ao aprovar uma Previdência mais inclusiva e pródiga, os constituintes de 1988 acabaram por conceber um organismo que se transformou num elefante nas costas da economia do país.
A questão da Previdência não é questão de governo, mas de Estado. Exige uma costura política difícil entre poderes
No sistema brasileiro, a idade das pessoas que têm seus pedidos de aposentadoria aprovados é, no geral, muito baixa. Em média, um homem se aposenta com 54 anos e uma mulher com 52, o que representa sobrevidas de 24 e 29 anos, respectivamente. Muitas vezes, o tempo de concessão dos benefícios supera o de contribuição.
A perspectiva é que a população com mais de 60 anos do país triplique nos próximos 35 anos. Mantidas as regras atuais, o custo com a Previdência, que hoje é de cerca de 11% do PIB, poderá chegar a 25% em 2050.
As receitas do governo, por mais otimistas que sejam as projeções, não acompanharão o ritmo de alta nos custos da Previdência, o que só fará agravar o desequilíbrio nas contas do sistema. O efeito líquido será uma redução ainda maior na velocidade de crescimento do país, que será obrigado a diminuir ainda mais seus investimentos para custear benefícios.
Elevar a idade mínima de aposentadoria, portanto, é a medida mais importante e fundamental para solucionar o problema. Mesmo que a nova regra do 85/95 seja aprovada, o brasileiro ainda poderá se aposentar entre 55 e 60 anos, contra mínimo de 66 anos nos EUA e entre 60 e 65 no Chile. Sem revisões adicionais, rapidamente o sistema voltará a ficar insustentável.
Os próprios benefícios concedidos, muitas vezes ainda são desproporcionalmente elevados, refletindo regras antigas que não foram corrigidas em nome do "direito adquirido" - especialmente no caso de aposentadorias e pensões de servidores públicos e militares. Esses pagamentos representam enorme dreno de recursos para a Previdência.
A solução dessas distorções passa, necessariamente, pela equalização das regras para servidores públicos e contribuintes do setor privado - especialmente no que tange os tetos de benefícios. Enquanto para assalariados o valor máximo das aposentadorias fica abaixo de R$ 5 mil, para servidores não há limite. Em 2009, o benefício médio para servidores federais aposentados chegava a R$ 16 mil.
Correção importante também seria necessária na concessão de pensões por morte. Hoje o Brasil gasta cerca de 3% do PIB com esses benefícios, três vezes mais que a média mundial. Extinção de benefício para viúvas que voltem a se casar ou redução no valor para aqueles que têm outra fonte de renda são caminhos possíveis.
Nosso sistema previdenciário benevolente em excesso tem ainda outro efeito indireto, mas não menos nocivo. As regras atuais da Previdência são um incentivo para que pessoas se aposentem precocemente, reduzindo o tempo de contribuição para o sistema e prejudicando o crescimento econômico de todo o país ao se retirarem ou diminuírem sua atuação no mercado de trabalho.
O vínculo existente hoje entre o valor do salário mínimo e os benefícios da Previdência é um ponto que precisa ser revisto, dado seu impacto sobre o sistema. A política de reajuste para o mínimo nos últimos anos o fez aumentar em ritmo mais acelerado que o salário médio da população. Assim, o gasto com benefícios aumentou muito mais rapidamente que a arrecadação com contribuições.
Uma fórmula diferente para o reajuste dos benefícios, que definisse revisões com base no tempo e valor de contribuição, na idade de cada trabalhador e no número total de contribuintes seria mais adequada. Sistemas assim foram adotados por países como a Alemanha e evitam distorções econômicas e impactos na produtividade
Soluções para o nó da Previdência existem e são relativamente simples. Sua natureza, entretanto, as torna impopulares e os efeitos positivos só se percebem no longo prazo. O custo político para adotá-las é tão significativo que inibe governantes a se comprometerem completamente com elas. Reformas promovidas por governos passados melhoraram a situação, mas não desataram o nó.
A questão da Previdência, porém, não é uma questão de governo, mas de Estado. Ela exige uma costura política difícil e complicada entre poderes e, para que realmente saiam do papel, é essencial que a sociedade se mobilize e pressione por mudanças. Sem isso, o tema nunca terá a prioridade que necessita na agenda política.
Desde 1988, a dificuldade política associada às mudanças mais profundas na Previdência prejudica sua evolução para um sistema cujo foco principal não é a proteção social pura e simples, mas a promoção de condições para o desenvolvimento. Medidas necessárias, mas impopulares, que permitiriam essa evolução não são discutidas ou, quando são, raramente saem do papel. Enquanto isso, o elefante nas costas da economia fica cada vez mais pesado.
Equilibrar a Previdência, tornando-a mais eficiente, poderá liberar recursos para investimento em educação, infraestrutura e emprego que, indiretamente, criarão condições para que menos pessoas dependam tanto da aposentadoria. É a chance que temos como sociedade de usar o elefante como montaria em direção ao futuro em vez de carregá-lo nas costas. (Nicola Calicchio e Patrícia Ellen da Silva - Valor Online)