A instabilidade sistêmica do Brasil
Não há dúvida que um dos grandes legados do Plano Real foi a rápida e duradoura redução da inflação. O sucesso do plano de estabilização, todavia, foi sustentado pela sobrevalorização da taxa de câmbio, da ampla liquidez no mercado internacional e da taxa de juros real excessivamente elevada; elementos esses que levaram à deterioração das contas externas e à dependência excessiva de capitais externos. Ou seja, os mesmos fatores que contribuíram para o sucesso do Plano Real no combate à inflação também conduziram ao baixo crescimento de longo prazo e à maior vulnerabilidade do país à crises financeiras e cambiais.
Apesar da estabilização cambial ter contribuído para a redução da inflação, a persistência da sobrevalorização da taxa de câmbio afetou negativamente a competitividade da indústria brasileira e o saldo da balança comercial, que somadas à dependência de capitais externos, contribuiu para déficits crônicos em transações correntes - não apenas pela conta comercial, mas também pela conta de rendas, a qual é historicamente deficitária no Brasil.
Isto é, a atração de capitais externos está atrelada à repatriação de divisas, incluindo a remessa de lucros e dividendos, e os pagamentos correspondentes às obrigações externas. Temos, então, uma situação na qual déficits em transações correntes tornam-se recorrentes e geram uma elevação da instabilidade financeira.
Os fatores que levaram ao sucesso o plano Real contra a inflação também levaram ao baixo crescimento
O risco de crise no balanço de pagamentos fica temporariamente contido via entrada de intensos fluxos líquidos de capitais durante a fase de expansão. Cria-se, dessa forma, uma dinâmica perversa na qual a manutenção desta política gera instabilidade financeira, uma vez que a sustentabilidade dos déficits na conta externa está atrelada ao crescimento nos financiamentos externos a uma taxa igual ou maior que a taxa de juros do estoque da dívida. Esse cenário é similar ao conceito de finanças Ponzi, adotada pelo economista Hyman Minsky na sua teoria de instabilidade financeira, que é intrinsicamente instável e vulnerável à crises financeiras.
A crise do Real forçou a mudança do regime cambial, permitindo uma menor dependência de atração de capitais externos por juros. No entanto, foi implementado o tripé macroeconômico sob a convicção de que o câmbio flutuante passaria a ajustar desequilíbrios no balanço de pagamentos e a taxa de juros (assegurado o equilíbrio fiscal) seria o instrumento de combate à inflação. O governo insistiu na política de atração de capital externo e continuou a usar o câmbio apreciado como arma anti-inflacionária. Os juros elevados (ainda que menores que do regime anterior) continuaram a atrair capitais externos, mantendo o câmbio apreciado. Porém, a política monetária inibiu o investimento produtivo, deprimiu a demanda doméstica e estimulou a demanda por ativos financeiros. Isto, de fato, contribuiu para o controle da inflação, porém às custas de baixo crescimento econômico de longo prazo.
A ampla liquidez internacional, brevemente interrompida devido à crise financeira de 2007-2008, foi retomada com a política de juros baixos praticados em países desenvolvidos e o boom de commodities, que somadas à elevação na nota de crédito soberano do Brasil para grau de investimento pelas agências de risco em 2008, contribuiu para atrair investidores de países desenvolvidos e levou à um forte crescimento da dívida externa do setor privado brasileiro. Por exemplo, a dívida externa das empresas não financeiras saltou de US$ 51,5 bilhões em setembro de 2007 para US$ 116 bilhões em setembro de 2015. A dívida externa dos bancos saltou de US$ 75 bilhões para US$ 156 bilhões. Já as operações de empréstimos intercompanhia saltaram de US$ 47,3 bilhões para US$ 204 bilhões no mesmo período.
Apesar do setor público ter se tornado um credor líquido em moeda estrangeira, as fontes de fragilidade financeira permaneceram, dado que se mantém a necessidade de atrair capitais externos. Ademais, a massiva intervenção do BC, por meio da elevação da taxa de juros e a utilização dos chamados swaps cambiais, foi ineficaz para conter a desvalorização do real. Temos, assim, um problema estrutural e uma dinâmica perversa causados por esta política esquizofrênica.
Com a reversão das condições externas favoráveis que prevaleceram no período anterior à crise financeira internacional de 2007/2008, déficits crescentes nas transações correntes e alavancagem do crédito, a acumulação líquida de ativos financeiros do setor privado doméstico caiu para um saldo negativo médio de 0,1% do PIB entre 2010 e 2013. Como Minsky observou, déficits do setor privado são insustentáveis. Por outro lado, a tentativa já em curso de controlar a absorção interna diminuindo, assim, o déficit em transações correntes, aprofunda a recessão atual e adiciona combustível para uma crise financeira.
Há também outro fator que não pode ser ignorado. A manutenção da taxa de juros reais excessivamente elevadas reflete diretamente sobre a composição do orçamento público uma vez que os déficits nominais são causados, basicamente, pelo pagamento de juros sobre a dívida pública. Temos, por um lado, a imposição de uma rigidez tanto para a política fiscal quanto para a política monetária, já que a continuidade de superávits primários torna-se essencial para conter a absorção doméstica; por outro lado, a política monetária se torna refém de uma política contracionista para atrair capitais externos.
Em suma, ao insistir em políticas que não deram certo impõe-se uma rigidez para a política fiscal e monetária, o que leva a perda da autonomia na formulação de política econômica. Além disso, a adoção destas políticas convencionais aumentam as condições para o aprofundamento da instabilidade financeira, gerando crises mais frequentes e cada vez mais severas. (Felipe Rezende - Valor Online)